texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/12/2012
Depois da coluna da semana passada, sobre declarações “birraciais” de Barack Obama, tive tempo para conferir algumas das listas de “melhores” que congestionam a internet nesta época do ano. No New York Times, entre os 100 livros notáveis de 2012, encontrei “American tapestry”, de Rachel L. Swarns. É uma investigação, a mais detalhada possível diante da precariedade documental, sobre “a história dos ancestrais negros, brancos e multirraciais de Michelle Obama“. Apesar de minha convicção de que somos todos mestiços, fiquei surpreso: percebi que sempre pensei a primeira dama dos EUA como puramente negra. Sua “condição racial” nunca era motivo para dúvida.
Lendo o artigo que deu origem ao livro, publicado também pelo New York Times em 08/10/2009, descobri que meu espanto foi compartilhado por outras pessoas. As atenções estavam voltadas para o encontro mais improvável dos pais do presidente – uma americana branca apaixonada por um estudante africano negro. A família de Michelle – há várias gerações apenas americana – seria bem mais comum, “sem interesse”. O modo dominante de se pensar raça nos EUA – como escreveu Caetano Veloso (para ler a letra completa, clique aqui, depois na capa do disco “Circuladô – Ao Vivo”, depois em “letras” e depois na segunda faixa “Americanos/Black or White”), “para os americanos, branco é branco, preto é preto (e a mulata não é a tal)” – classificaria todos seus membros como pura ou simplesmente negros. Toda ambiguidade ou complexidade estaria assim afastada de antemão.
A busca genealógica pelos ancestrais da primeira dama americana chegou até Melvinia Shields, escrava que quando tinha 6 anos foi avaliada em 475 dólares. Por volta de 15 anos, ela deu luz a um menino de pele muito clara, Dolphus, que é o tataravô de Michelle. Testes recentes revelaram que seu pai era branco. Ninguém tem certeza, mas – como sabemos baseados na experiência brasileira – estupros de escravas negras por senhores brancos eram comuns. Dolphus escolheu se identificar como negro, e parte de seus descendentes terminaram nos bairros negros (o “South Side”) de Chicago, onde Michelle foi criada. Outras pessoas com tons de pele igualmente claros podem ter escondido sua condição de filhos de ex-escravos e estão na origem de famílias depois classificadas como brancas.
Em comentário para o New York Times, Annete Gordon-Reed, professora da Escola de Direito de Harvard (e provavelmente classificada como negra), escreveu: “Certas pressuposições combinam bem com o programa racial histórico do país: colocar todo mundo no seu “lugar” racial para determinar como deve ser tratado. Que uma pessoa com a aparência da sra. Obama não seja “toda” negra desestabiliza as coisas, especialmente ao considerar as implicações. São as pessoas com aparência “toda” branca realmente brancas?” Henry Louis Gates Jr., também professor de Harvard e um dos intelectuais negros mais famosos e polêmicos, foi além nas implicações: “em desafio à convenção legal e social, uma enorme quantidade de mistura racial acontece há muito nos EUA, sobre a qual nós, como sociedade, também há muito vivemos em profunda negação.”
Se a escolha dos “americanos” for, a partir de agora, não mais negar esse fato, só me resta fazer a saudação: bem-vindos ao mundo crioulo. É bom se preparar, essa revelação não significa a conquista da paz “racial”. Novos problemas aparecem, não mais resultados da simplificação e sim da complexidade. Como outro comentador do artigo de Rachel L. Swarns, John McWhorter (“senior fellow” do Manhattan Institute), pergunta: “quem supõe que uma pessoa branca que abriga sentimentos anti-negros vai mudar sua maneira de pensar ao descobrir […] que ela provavelmente tem um pouco de “negro” por causa dessas interações no passado?” A experiência brasileira é resposta clara: identificar-se como mestiço não traz nenhuma garantia de erradicação do racismo.
Tive a sorte de, nesse meio tempo, receber do Cláudio Prado, grande animador e agente anti-caretice da nossa cultura digital, um excelente presente: seleção de textos assinados por Mário Lúcio Sousa, músico e ministro da cultura de Cabo Verde. O espaço desta coluna em 2012 está acabando. Voltarei a comentar o pensamento do Mário Lúcio em 2013 (mas adianto: ele diz que Obama é presidente crioulo; ou mais, só é presidente por ser Crioulo). Fica aqui um texto (que também me lembra a boa filosofia de vida de Dona Canô), conselho para “americanos”, que são também meus votos de feliz ano novo: “Mestiços somos todos, porque ser mestiço é uma contingência genética. Mas o Crioulo não é a mestiçagem, não olha para a cor da pele, nem dos olhos, não olha para regiões nem para religiões, é uma conduta e uma assunção. É a assunção da cultura de um novo mundo, em que o homem não é do lugar de origem, mas de onde se sente bem, pode ter várias raízes e ser o outro na diferença.”