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indignado

04/06/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27-05-2011

Interessante perceber a coincidência, quando abri os jornais do dia 18: na Folha de S. Paulo, Marcelo Coelho escreveu brilhantemente sobre a moda do politicamente incorreto e, aqui no Segundo Caderno, Francisco Bosco lançou seu manifesto “tô fora” [leitura online só para assinantes] contra a busca desesperada, cada vez dominante em certo debate de ideias nacional, por polêmicas. Há tempos eu planejava um texto semelhante, comentando o mesmo fenômeno, pois considero os sucessos tanto do “politicamente incorreto” quanto das “polêmicas” sintomas de um problema mais profundo e triste.

Já esbarrei nesse assunto quando citei outra coluna da Folha, de Contardo Calligaris: “Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores.” Claro, conheço também o sucesso que o livro francês “Indignai-vos”, de Stéphane Hessel, tem feito mundo afora. E sei que, no Brasil, há motivos de sobra para ficarmos indignados. Mas indignação não basta por si só, nem pode ser pensada como finalidade da ação política/moral. Ela só faz sentido se for o início da ação, que crie soluções e novas maneiras de transformar o mundo. Quem abre o Twitter, ou quem lê cartas de leitores dos jornais, pensa que o Brasil é terra de indignados. Mas isso não quer dizer politização. A indignação brasileira atual muitas vezes é apenas o exercício da maledicência. Um jogo bobo: sou mais corajoso, nado contra a maré, pois falo mal de todo mundo. E tudo fica como era antes.

Há cada vez mais seminários e mesas redondas no Brasil. Muitos organizadores são bem-intencionados. Contudo, o espírito denunciado por Francisco Bosco (ele citou a seguinte recomendação de um mediador: “Podem polemizar, detesto mesas em que há consenso, em que todos dizem a mesma coisa”) realmente anda impedindo que os debates de tornem produtivos, ou mesmo surpreendentes. Ninguém discute nada, ou aprofunda nenhuma “questão”. A moda é a do show indignado: o expositor abusa do estilo bombástico já testado com outras palestras, falando mal de qualquer “poderoso”. A platéia adora. O efeito é catártico. Apaziguador. Bater palmas é suficiente, dever cumprido. Não é preciso fazer mais nada, além dessa manifestação barulhenta de indignação “solidária”. Então bater palmas funciona, no final das contas, como lavar as mãos: o que vem daqui para frente não tem nada a ver conosco, é coisa para os políticos decidirem e cuidarem por nós. A indignação se torna o caminho mais fácil. Ninguém quer saber de discursos complexos, argumentações entediantes para se acompanhar, levando em conta pontos de vistas diferentes. O público fica contente com slogans pseudorevolucionários, com tiradas engraçadas, com frases destemperadas, do contra. A simplificação dá conta do nosso negócio, é o curto-e-grosso que nos satisfaz.

Assim se explica o sucesso tanto do politicamente correto quanto do politicamente incorreto. Os dois simplificam o mundo. Os incorretos viram Dom Quixotes lutando contra moinhos de ventos transformados em monstros pelas suas próprias cartilhas pretinhas básicas. Inventaram o mito de que o mundo é dominado pelo politicamente correto, e assim sua cruzada fica mais heróica. Francisco Bosco identifica outro mito que justifica muita indignação pré-fabricada: “parte-se do princípio que existe uma prática cordial no debate intelectual brasileiro.” Então multiplicam-se os indignados anticordialidade dominante. É uma estratégia de marketing: faz sucesso em blogs e em cadernos culturais que acham que polêmica vende jornal, ou atrai visitantes. Algumas frases do texto de Marcelo Coelho foram tão retuitadas (autocrítica?) que já se tornaram ditados populares contemporâneos. Por exemplo: “Ser ‘politicamente incorreto’, no Brasil de hoje, é motivo de orgulho. Todo pateta com pretensões à originalidade e à ironia toma a iniciativa de se dizer ‘incorreto’.” Não é possível ser mais preciso. Apenas acrescentaria: muitas vezes os corretos também pensam que o mundo é dominado por incorretos, e querem contrariar o espírito dominante. Contrariar para fazer sucesso (“só para contrariar”), ser querido, ser amado, ser fofinho (há muita fofura indignada por aí).

Onde tudo isso começou? Seria fácil dizer: Paulo Francis. Mas ele também era uma consequência, não a “causa”- mesmo com efeitos duradouros. Somos sim geração formada, direta ou indiretamente, por Paulo Francis – ou pior, pela caricatura de si mesmo que Paulo Francis inventou em seus últimos anos de colunista. Era divertido: esperar seu próximo texto para descobrir quem seria o espinafrado da vez. Até que aquilo ficou muito óbvio, e talvez por isso mesmo virou padrão, produção em série jornalistas e blogueiros que acham charmoso não gostar de nada que acontece no Brasil, que ganham fama e tietes por serem indignados com tudo que faz sucesso em nosso país, que deveria para sempre não ter jeito – se desse certo, do que iriam reclamar? Deve ser muito triste viver num lugar que não nos interessa em nada. Em seus textos, viramos tristes trópicos de verdade, cheio de exilados espirituais, que me dão enorme pena pois nenhum deles é capaz de construir carreiras sólidas nos lugares que veneram (e deve ser horrível ser condenado a viver num lugar onde tudo é “lamentável”). Nem Paulo Francis conseguiu ser colaborador do New York Review of Books. Isso alimenta mais raiva. Mais indignação e maledicência. Como Francisco Bosco: tô fora. Nesta coluna falo bem do que acho bom, do que quero que dê certo (“não tenho tempo a perder”). Totalmente pós-indignação.

radicalizar Gilberto Freyre

31/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13-08-2010

Recebi os convites ao mesmo tempo: para  escrever esta coluna semanal e para participar da homenagem a Gilberto Freyre na Flip 2010. Pensei que era ótima oportunidade de – como dizia a Nardja Zulpério, saudosa personagem teatral interpretada por Regina Casé, citando no palco a maneira neoconcreta de falar da “empregada do Guel” – “matar dois coelhos com uma caixa d’água só”. Gilberto (é assim que seus estudiosos o chamam, apenas com a intimidade do primeiro nome) sempre funcionou em minha vida como uma enorme caixa d’água, onde em momentos cruciais encontrei substância de sobra para matar a sede de inspiração, geralmente na antropologia. Minha tese de doutorado, sobre o mistério do samba, girava em torno de seu encontro com Pixinguinha e de seu elogio da mestiçagem. Mas agora estava à procura de um outro Gilberto, aquele que tinha escrito nos jornais, com frequencia espantosa, durante quase sete décadas de sua vida, desde a adolescência até seus 87 anos. Como ele conseguiu, no meio de tantos outros afazeres e com tal desenvoltura, realizar tal façanha? Haveria algum truque para a longevidade, e contra de falta de assunto (paranoia de toda coluna), periodista?

O contato com seus artigos de jornal está hoje facilitado pelo trabalho generosíssimo da Biblioteca Virtual Gilberto Freyre, que já tornou disponível via internet uma quantidade enorme de textos que eram impossíveis de serem encontrados sem viagens para várias bibliotecas físicas, aquelas do antigo mundo real, sobretudo as localizadas em Pernambuco. Na web, é rapidinho (imagino que Gilberto adoraria essa gíria que transforma nossa pressa obsessiva atual em atividade carinhosamente diminutiva) fazer pesquisas por palavras, identificando cruzamentos entre escritos de épocas diferentes e revelando como determinadas idéias se mantiveram constantes no decorrer de sua carreira.

Que o leitor/pesquisador não se engane. As idéias fixas de Gilberto não dão nenhuma monotonia para a leitura de seus artigos. Pelo contrário: elas são o motor gerador de surpresas, paradoxos, mudanças, contradições. O autor de Casa Grande e Senzala fugia dos sistemas fechados e das conclusões óbvias como um vampiro – não os sanguinariamente corretos da saga Crepúsculo – foge da cruz. Seus livros nunca apresentam capítulos conclusivos, ou teses acabadas e definitivas. Casa Grande e Senzala, que muitas vezes foi criticado – por quem não se concedeu o prazer de sua leitura – como a descrição de um paraíso tropical, termina de repente, de forma abrupta, com a enumeração de dezenas de doenças e verminoses que infernizavam a vida dos negros no Brasil. Isso não era uma saída fácil, em cima do muro ou para chocar a audiência. Era uma determinação metodológica, única forma de poder pensar – sem leviandade – o que há de difícil e complexo na cultura, sobretudo em terras tropicais.

Muita gente falava que Casa Grande e Senzala teria inventado o mito da democracia racial. Reli o livro, com atenção redobrada, e não encontrei a expressão “democracia racial” em nenhuma de suas páginas. Agora, sem esse alvo fácil,  todo mundo ataca a idéia, essa sim tipicamente freyreana, de “equilíbrio de antagonismos” quase como se fosse sinônimo de “democracia racial”. Nada pode estar mais longe do pensamento de Gilberto: equilíbrio não seria resolução ou fusão dos antagonismos. A tendência para o equilíbrio vive em luta constante com várias tendências antagônicas. Sem trégua, sem final feliz, sem conclusão. Gilberto é “mal-resolvido” sim: por convicção, pois não existe resolução útil para os problemas que quis estudar. A realidade é que é mal-resolvidíssima.

A defesa constante do contraditório, do diverso, do não definido e do inconcluso está presente nos textos de Gilberto desde os seus primeiros artigos de jornal, enunciadas de forma muitas vezes deliciosamente petulante, e sempre com estilo impecável e esperto. Escrevendo sobre o livro História da Civilização, de seu mentor Oliveira Lima, Gilberto não se intimida e anuncia as bases bem-humoradas e movediças de seu projeto intelectual, de poligamia com muitas maneiras de ver/viver a vida: “Há no livro do Sr. Oliveira espantosas afirmativas em tom categórico. São poucas felizmente. […] As opiniões definitivas… É perigoso ter opiniões definitivas. Perigoso, porém fácil. É mais fácil formar uma opinião que fazer um laço na gravata. […] A verdade anda sempre de Paris. É rebelde à monogamia.”

Sábio e saboroso conselho para um principiante colunista. A tentação de ter opiniões definitivas, de preferência indignadas (como disse uma vez Contardo Calligaris: a indignação é a forma mais barata de inteligência…), são estupidamente fáceis, e fazem tanto sucesso… O complexo, muitas vezes, é impopular, não levanta as massas, não parece lógico… Gilberto não tinha simpatia pela lógica, descrita como “gelo resvaladio sobre cuja superfície não ouso patinar” (Diário de Pernambuco, 03-08-1924, ainda não digitalizado pela Biblioteca Virtual Gilberto Freyre). Citei tudo isso na minha fala na Flip. Lancei um desafio: vamos radicalizar Gilberto? Sim, o “elogio da mestiçagem” foi usado muitas vezes para negar o racismo existente no Brasil. Precisamos desconectar esse orgulho de ser mestiço de tudo que há de reacionário em seu passado, transformando-o em nossa arma mais poderosa, radical e original de combate ao racismo. Para começar: reler Gilberto. Com outros olhos, sem preconceitos. Como opiniões sempre renovadas, sem conclusões.

ver também: ainda Giberto Freyre – “a vidas às claras”