texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/12/2013
Parece que o espectro que ronda nossa cidade maravilhosa não é o do comunismo (anunciado por Marx e Engels naquela primeira frase enigmática de seu “Manifesto”), mas sim o do arrastão. Mês passado, ele reapareceu de sunga branca, fazendo búú nas praias (que, para infelicidade de alguns, não são tão chiques quanto as de Mônaco, mesmo em frente ao Fasano). Eu pensei: já vi esse filme trash antes, e não era cena do Gasparzinho. Voltando à minha filosofia marxista customizada: a história se repete em farsa da farsa da farsa, ad infinitum, como no loop eterno da instalação “Ão” de Tunga, com trecho repetido de “Night and Day” (não confundir com a saltitante “Day’n’Nite” de Kid Cudi) servindo de trilha sonora para passeio onde não há luz no fim do túnel (meu primeiro contato com sua película rastejante foi nos anos 1980 em galeria de Ipanema; hoje está exposta no Inhotim).
Recapitulando: em 1992, também no perigosíssimo Arpoador, houve tumulto animado, durante domingo de muito sol. No dia seguinte as manchetes dos jornais berravam irresponsáveis: Arrastão! Eu me arrependo de ter escrito artigo para o Jornal do Brasil tentando explicar que aquilo não fora assalto “serial” e em massa, mas sim (os dados policiais já confirmavam: quase ninguém roubado) a reencenação, nas areias escaldantes, de conflitos dançantes entre turmas de favelas diferentes que costumavam acontecer em baile funk. Resultado: os ataques se voltaram contra o funk. Quase todos os bailes de clube (Mackenzie, Cassino Bangu etc.) foram fechados. Deu origem a um atraso enorme na vida cultural da cidade, pois o desenvolvimento de sua nova música eletrônica teve que acontecer malocado em favelas patrulhadas por “comandos” cada vez mais armados. O poder público, com ajuda da imprensa, foi coinventor do “proibidão”.
21 anos depois, agora, depois do feriado da Consciência Negra, abro os jornais e as manchetes estão histéricas novamente: Arrastão! Parece flashback de viagem de droga muito ruim. Foi arrastão mesmo? Não importa: até o consulado dos EUA emitiu alerta falando em “roubos de massa”. Qual será o próximo bode expiatório? Qual será o próximo “proibidão”? Por que essa compulsão na “reincidência” interpretativa, que já se provou equivocada anteriormente?
O autosubversivo Albert O. Hirschman, um dos maiores pensadores do Século XX (ele teve ilustres discípulos/amigos brasileiros, que poderiam lucrar com doses mais generosas de autosubversão também), fez comentário absolutamente inspirador (no final de sua obra-prima “As paixões e os interesses” – que acaba de ter nova edição americana, com prefácio de Amartya Sen e posfácio de seu biógrafo Jeremy Alderman) sobre a máxima de Santayana: “aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo”. Essas palavras são tão citadas (recentemente foram inspiração para vários textos da Batalha das Biografias) que passamos a acreditar que fatos históricos se repetem mesmo.
Para Hirschman, a máxima tem maior probabilidade de “aplicar-se rigorosamente à história das ideias do que à história dos fatos”. Sua explicação, deliciosa: “Esta última, como sabemos, quase nunca se repete, porém, circunstâncias vagamente similares, ocorridas em dois diferentes e talvez distantes momentos do tempo, podem facilmente dar origem a pensamentos-respostas idênticos e identicamente imperfeitos se o episódio intelectual anterior for esquecido.” Na minha humilde opinião, foi isso que mais uma vez aconteceu com o tal arrastão. Fatos diferentes (e talvez somente espectrais), circunstâncias diferentes, mas desencadeando o mesmo pensamento-resposta, que educadamente podemos considerar “imperfeito”.
Sou cada vez mais cético (incluindo convicto relativismo fora de moda). Por isso fiquei comovido com a profissão de fé no valor da História que multidões externaram na Batalha das Biografias. Senti até uma ponta de inveja, a mesma que entristece meu coração quando, diante do delírio de torcida de time de futebol, percebo que nunca vou dar aqueles urros/pulos de felicidade.
Fui formado por livros errados, na idade errada. Entre eles: “O inventário das diferenças”, com aula inaugural de Paul Veyne no Collège de France. Ali aprendi coisas horríveis que viraram bandeiras inconvenientes. Exemplo: “uma cultura está bem morta quando a defendem em vez de inventá-la.” Ou (crianças, tapem seus ouvidos!): “a verdade não é o mais elevado dos valores do conhecimento”, pois “é mais importante ter ideias do que conhecer a verdade”. Pior ainda: “a História é feita para divertir os historiadores, é tudo.” Que sina: não consigo nem ter raiva ou piedade daqueles que acreditam no espectro do arrastão.