texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/10/2011
Durante as férias desta coluna, o Plano B, da Lapa, realizou a série de eventos “Plano-sequência”. Terminou no sábado passado, com maratona de performances. Na base de todos debates, apresentações musicais, intervenções artísticas, exibições de vídeos e várias outras atividades pós-tudo, havia outro processo acontecendo: a criação de nova figura jurídica para o Plano B, que além de loja de discos passará a ser também associação cultural. Isso só vem estabelecer no papel algo que já acontecia na prática. O Plano B nunca foi apenas loja ou ponto de comércio. Quem presta atenção na vanguarda da vida artística do Rio de Janeiro já está careca de saber: desde 2004 ali funciona um dos melhores e mais importantes centros culturais da cidade.
Dizer isso não é uma forma de menosprezar o comércio que existe por lá. Em tempos de “serial killing” de outras lojas de disco, precisamos celebrar a existência de um estabelecimento que tem em suas paredes vinis de Arnold Schoenberg, Pierre Henry, Afrika Bambaataa e Topo Gigio. Conheço muita loja boa mundo afora e posso garantir que não há prateleiras mais ousadas ou inteligentes. Mesmo assim, nada se compara com o que acontece entre as prateleiras, geralmente nas sextas-feiras a partir das 8 horas da noite. Aqueles poucos metros cúbicos se transformam em zona autônoma temporária de criação estética radical, sempre em eventos gratuitos. Tudo parece e é precário, mas isso não impediu o Plano B de ter uma programação de dar inveja – pela sua consistência e durabilidade – a todos os outros centros culturais cariocas, virando até referência mundial para aquela música que já experimentou o experimental.
Há quatro alto-falantes, um deles pifou, os outros três apresentam vários problemas técnicos, mas juntos produzem som como nenhum outro do planeta. Através deles ouvi um dos shows mais perfeitos da minha vida, o do japonês Tetuzi Akiyama, um dos mais originais guitarristas do mundo, que parte de um minimalismo blues para chegar à multiplicação mágica de harmônicos. Suas mãos parecem dedilhar as cordas vocais dos cantores do povo Tuva, da Sibéria. No Plano B, durante o carnaval, também tive outra experiência provavelmente mística ao me encontrar no meio da performance insana dos suecos do Enema Syringe que tocavam uma versão electro-trash de Sex Pistols enquanto lá fora passava um bloco cantando “Mamãe eu quero” – acredite: a combinação funcionava de modo perfeitamente zen.
Essas são apenas duas lembranças, as primeiras que me vêm à mente quando pensei agora nas minhas visitas ao Plano B. Entre o Japão e a Suécia, aquele espaço da Lapa já programou música barulhenta (no sentido mais libertador que o barulho possa ter) do Peru, da Polônia, de Porto Alegre, além de revelar centenas de criadores do Rio de Janeiro que apesar de seus decibéis e choques sonoros permaneciam inaudíveis. Nos primeiros anos, era como se eu conhecesse pessoalmente todos os frequentadores, músicos e público. Mas com o passar do tempo foi aparecendo gente nova, banda nova, coletivos novos, malucos novos, audiências novas, mostrando que ali também é território de formação de novos ouvidos, e novo pensamento crítico para arte nova.
O Plano B foi diversificando suas atividades. Há alguns anos sedia um festival permanente de um cinema tão estranho e estimulante quanto a música de seus shows. Já foram exibidos por ali os filmes de Harry Smith (que também foi curador da Anthology of American Folk Music, de onde veio Bob Dylan), do pessoal do Vienna Action Group (houve algo mais extremo na história do modernismo?) e de Paradjanov. Há também um lado propriamente educativo, com várias oficinas de “circuit bending” – a arte de hackear máquinas para produzir surpresas – e da linguagem de programação Pure Data. Muita coisa feita na cara e na coragem, sem apoios oficiais ou patrocínios (que deveriam aparecer, imediatamente, sobretudo agora com sua formalização como associação cultural).
A pré-história do Plano B não é menos interessante, desbravadora ou surpreendente. Nos anos 70/80, Fernando Torres era um garoto que como eu amava o Can e o Coil. Se você não conhece essas bandas hoje, imagine a dificuldade de conseguir seus discos naquela época, muito antes da WWW. Para alimentar seu exótico vício por música, digamos assim, diferente, Fernando passou a importar LPs para revendê-los para amigos com mesmo gosto minoritário. No início, as vendas se davam de porta em porta. Depois montou banquinha no centro da cidade, que parecia uma miragem: no meio de muitos camelôs vendendo o sucesso do momento, havia um oásis “noise”, com eletroacústica e rock industrial.
Há 8 anos começou sua história no Plano B. Dizem que ele é o “B”, dos sonhos desarrumados. Fátima Lopes, sua mulher, é o “plano”, que cuida de organizar tudo, inclusive o blog e a lista de emails que funcionam como o “boca a boca” onde tomamos conhecimento da programação.
Há poucas regras na casa. Talvez a única seja: “não é permitido tocar bateria”. Para não incomodar os vizinhos. Os outros barulhos são tão estranhos que, quando as pessoas da rua se tocam, o show já terminou. Não faz muito sentido reclamar: o Plano B faz aquele trecho da Lapa aparecer nos jornais fora das páginas policiais. E faz o Rio aparecer como ponto central num circuito de música mundial no qual antes tínhamos apenas presença silenciosa.