texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/10/2011
Cláudio Lenz Cesar é um dos meus melhores amigos. Escrevo isso, no início deste texto, para deixar claro que o que vem a seguir não tem a ver com objetividade científica, mesmo sendo o Cláudio meu amigo mais comprometido com o que há de mais fundamental na realidade objetiva. No início deste mês, ele ganhou o título de professor titular do Instituto de Física da UFRJ. Esta semana, está em Genebra, trabalhando no acelerador de partículas do CERN. Mas costumo apresentá-lo (é a pessoa que mais gosto de apresentar, sobretudo em festas barulhentas) usando outras credenciais: “este aqui é o Cláudio, ele produz antimatéria.” A reação das pessoas é assustada, pensam que é brincadeira. Pior que não é: Cláudio ganha sua vida casando antiprótons com antielétrons para fazer anti-hidrogênio.
Claro que tenho que explicar melhor o que são essas anticoisas. Aqui é que a conversa, depois da apresentação, quando nosso interlocutor não muda de assunto ou sai de fininho, fica boa. O antielétron é igualzinho a um elétron, só que tem carga positiva. Já o antipróton tem carga negativa. Em tese, o big bang teria produzido tanto partículas quanto antipartículas. Mesmo uma tempestade de raios pode produzir antielétrons. Então resta a grande dúvida: onde foi parar a antimatéria? Sumiu, se escafedeu? Vive escondida? Foi parar nos quintos do universo? Foi criar um antiuniverso?
Há muitas hipóteses para explicar o desaparecimento das anticoisas. Mas nenhuma delas foi comprovada experimentalmente pois até agora ninguém conseguiu estudar as propriedades da antimatéria pois ela se aniquila ao encontrar qualquer matéria. (Por isso algumas pessoas dizem que o big bang deve ter produzido um pouquinho mais de matéria do que antimatéria, e existiríamos por causa desse abençoado “plus a mais”.) Então muitos físicos passaram a queimar seus neurônios procurando uma maneira de aprisionar antiprótons e antielétrons em “garrafas” magnéticas evitando seu encontro com a matéria circundante e podendo assim realizar experiências para conhecer melhor as tais partículas com cargas do contra.
Recentemente um grupo internacional de cientistas do qual Cláudio fazia parte reuniu um antipróton e um antielétron e produziu átomo de anti-hidrogênio de baixa energia. No ano passado, seu novo grupo, chamado Alpha, conseguiu aprisionar o antihidrogênio por frações de segundo. Esse feito foi considerado pela revista Physics World como o maior avanço da física em 2010. Este ano o tempo de aprisionamento passou para vários minutos o que torna possível, no ano que vem, a realização de uma experiência decisiva: a “excitação” – praticamente simultânea e por um mesmo raio laser – de um átomo de hidrogênio e outro de anti-hidrogênio para medir, com precisão absurda, se há alguma diferença entre seus níveis de energia. Se houver, além de encontrarmos uma pista para descobrir o esconderijo da antimatéria (e utilizações práticas para ela – o leitor nerd deve se lembrar que as espaçonaves de “Jornadas nas estrelas” são movidas a antimatéria), leis fundamentais da física precisarão ser revisadas.
Um dado importante para a conversa: o dinheiro para a tecnologia laser que vai ser usada na experiência é brasileiro. Mais do que isso: grande parte dos equipamentos (e do arranjo entre os equipamentos) que vão produzir o laser está sendo desenvolvida num laboratório da Ilha do Fundão. Quem nunca viu física experimental avançada in loco pode se espantar ao encontrar o Cláudio em seu habitat natural de trabalho, aqui do outro lado do Atlântico, longe da grandiosidade do CERN. Tudo é minúsculo e muito do dia a dia é consumido com chave de fenda ou soldando circuitos eletrônicos. Como ali se trabalha na fronteira do conhecimento humano, não há onde comprar os equipamentos essenciais da experiência (que nunca foi feita antes). É preciso construi-los (quando não inventá-los) também. Aqui entra muita criatividade. E, no caso do Cláudio, o jogo de cintura brasileiro, capaz de baratear processos que no primeiro mundo custariam fortunas.
O passado acadêmico do Cláudio ajuda. Formado na Universidade Federal do Ceará, com mestrado na Universidade Federal de Pernambuco (o que mostra que ninguém precisa estudar no “sul maravilha” ou “lá fora” para ter futuro brilhante), só depois teve contato com abundância de verbas para laboratórios ao fazer doutorado no MIT. Seu orientador americano (que já orientou dois laureados com o Prêmio Nobel – uma das noites mais memoráveis da minha vida foi quando, durante um pouco noticiado congresso de física realizado no Rio, levei Cláudio, esse orientador e 5 premiados com o Nobel para a Academia da Cachaça – foi divertido ver tanta inteligência lubrificada com batida de pitanga) recusou um convite e o indicou para seu lugar, acaso que foi sua entrada no mundo da antimatéria depois de ter sido pioneiro na espectrografia a laser de átomos (normais, não anti) de hidrogênio. Hoje, nesta sexta-feira, ele está lá no CERN, testando novamente a pontaria dos seus lasers. Tomara que acerte na antimosca.
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Parabéns também para o grupo de físicos da Universidade Federal do ABC, “periferia” de SP, que mediu à temperatura ambiente, pela primeira vez no mundo, a simpática “discórdia quântica”. A ciência experimental brasileira está decolando em todos os lugares.