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Roberto Schwarz e Caetano Veloso – Parte 2

19/05/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 18/05/2012

Retomando a coluna da semana passada: segundo Roberto Schwarz, Caetano Veloso não usa populismo “na sua acepção sociológica usual, latino-americana, de liderança personalista exercida sobre massas urbanas pouco integradas.” Concordo: Caetano não se refere a Perón ou Vargas. Mas o resto da interpretação de Schwarz me parece menos clara: a “morte do populismo” não surge em “Verdade tropical” para anunciar um novo tempo em que o “povo trabalhador” (quem fala em povo somente trabalhador é Schwarz) não teria mais “papel especial” como “sujeito e aliado necessário a uma política libertadora”. Caetano, acredito, estava pensando com aspas (ele literalmente usou aspas), dialogando com os múltiplos usos e definições do popular (o próprio CPC diferenciava “arte do povo”, “arte popular” e “arte revolucionária”) que circulavam no debate cultural dos anos que antecederam o lançamento de “Terra em transe”, filme que traz cena polêmica do poeta ficcional Paulo Martins decretando “a falência da crença” – assim está escrito em “Verdade tropical” – “nas energias libertadoras do ‘povo’.”

A narrativa do artigo de Schwarz se constrói em torno desse trecho de “Verdade tropical” sobre “Terra em transe”, momento que teria sido decisivo para uma “virada” ou “conversão” de Caetano. Antes, era bom moço, “simpático à transformação social, ao método Paulo Freire de alfabetização de adultos e ao CPC”. Depois, passa a se imaginar “livre das amarras políticas tradicionais”, “cultuando divindades antagônicas” e se tornando também “adversário” da esquerda. Schwarz afirma repetidas vezes que sua leitura está baseada no texto, mesmo para desdizer o que Caetano diz (“a despeito do autor, não é isso que o livro mostra”). Então volto ao texto de Caetano.

Não sei se há “virada” tão nítida assim. Por exemplo: no relato de suas primeiras conversas com o diretor de teatro Álvaro Guimarães (“quem nos lançou, a mim e a Bethânia, como profissionais de música”), na parte do livro da qual Schwarz mais gosta, o autor de “Verdade tropical” já se distanciava do pensamento de certa esquerda: “ele me agradou em cheio e me interessou ao externar suas críticas ao teatro panfletário do CPC.” Em outro escrito da mesma época, seu primeiro texto longo, publicado em revista universitária baiana, Caetano ataca “uma tendência equívoca da inteligência brasileira”: “A julgar pelos artigos histéricos reunidos em livro pelo Sr. José Ramos Tinhorão […], somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de fazer música no Brasil.” Desafiando um pensamento nacional-popular, afirma que o “povo (e aqui podemos dar à palavra povo o seu sentido mais irrestrito, isto é, a reunião das gentes) desmaia aos pés do jovem industrial Roberto Carlos”, enquanto lançamentos do samba classificado como autêntico fazem sucesso “restrito aos universitários”. Claro que Caetano queria, bem antes de “Terra em transe”, combater esse tipo de populismo, culto de um “povo” irreal (que não deveria gostar de jovem guarda), cujo projeto, no Brasil, incluía apagar as lições de João Gilberto.

Contudo, a “morte do populismo” não foi encarada com alegria. Para Caetano, foi uma “hecatombe”. Quem escreve “hecatombe bem-vinda”, e fala das “razões que fizeram que Caetano festejasse a derrocada da esquerda”, é Schwarz. A narrativa de “Verdade tropical” tem tom de tragédia, não de festa. Não foi “júbilo ante o incêndio da UNE”, como escreve Schwarz, mas sim, nas palavras de Caetano, “estranho júbilo de entender com clareza suas razões [de Rogério Duarte – Schwarz o apresenta apenas como Rogério – que havia dito que o prédio da UNE deveria sim ter sido queimado], e mesmo de identificar-me com elas”. Porém, e isso é o mais importante, esse júbilo não era sorridente, ou experimentado sem dor. (Já li “Verdade tropical” como uma virada, mas com outro sentido, do antipop para o pop – e nela também não há nada festivo. Cito trecho angustiado, na minha leitura mais central que o comentário sobre o filme de Glauber Rocha: “Imagine-se com que força eu não tive que pensar contra mim mesmo para chegar a ouvir Roberto e Beatles e Rolling Stones – e mesmo Elis – com amor.”)

O que considero mais original no artigo de Schwarz, para além do texto do Caetano (mesmo que demonstrando satisfação ao reconhecer em “Verdade tropical” elementos para provar sua tese), é sua descrição de uma idade do ouro da cultura brasileira ali por volta de 1964, quando “a invenção artística radical se sintonizou com a hipótese da revolução e fez dela seus critérios”. Os grupos de tolo nacionalismo que depois vaiaram Caetano não deveriam ser considerados hegemônicos na esquerda dessa época. Contudo, Schwarz reconhece: “é possível que o saldo do período, avaliado nas obras, não sobressaia particularmente.” Então veio o tropicalismo, com suas obras brilhantes, e bagunçou essa frente anticapitalista, dando a tudo a feição de “grande mercado”. Schwarz não se deixa arrebatar nem pela caetanave: enxerga na alegria – agora sim – de Caetano, ao ser recebido, depois do exílio, por um trio elétrico espacial batizado com seu nome, como “abdicação”.

No final, tudo parece apenas mais um capítulo daquilo que o próprio Schwarz reconhece ser “uma comédia de desencontros” entre a contracultura e arte engajada. Não sei se devo torcer pelo encontro. O mundo ficaria chato sem novos rounds da luta entre Schwarz e Caetano.

Roberto Schwarz e Caetano Veloso

12/05/2012

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/05/2012

Vários de meus colegas de coluna já comentaram o artigo de Roberto Schwarz sobre “Verdade tropical“. Eu estava me sentindo mais por fora do que piercing em umbigo de piriguete. Abri espaço enorme na minha agenda para ler com atenção as já clássicas 59 páginas. Queria entrar na onda (e ajudar a vender o livro de Schwarz – afinal vivemos ainda o tempo do mercado, mesmo occupied, vitorioso). Porém, a leitura me deixou perplexo. Precisaria reler muitas vezes o artigo, assim como “Verdade tropical”. Schwarz levou 15 anos para tornar pública sua reflexão sobre o livro de Caetano. Gostaria de ter o mesmo tempo para digerir bem seu excelente artigo. Publicaria minha humilde opinião em 2027. Impossível: só a academia nos proporciona essa possibilidade de planejamento a tão longo prazo. Estou noutra, descontrolado. Meu tempo é agora ou nunca.

Por isso assumo o risco de escrever besteira. Minha primeira vontade, abusada, foi declarar que Schwarz apenas repete, muitos anos depois, em muito mais parágrafos, as perguntas que Fausto Wolff tinha feito na Tribuna da Imprensa em 1968: “Mas, dialeticamente, a que conduz a Tropicália? Constatado o caos, habituada a plateia ao caos, o que fazer depois? Qual a síntese para a antítese?” Ou ainda: “o que me parece positivo é a constatação do caos, da anarquia ignorante em que estamos envolvidos. Muito bem: o caos foi capturado e apresentado aos olhos perplexos da burguesia. Mas o caos funciona como a penicilina. No princípio tonteia os germes, mas em seguida os fortifica.” Imaginei irresponsavelmente que seria mais ou menos isso o que Schwarz quer dizer com “[o] contraste evidente entre as partes descombinadas agride o bom gosto, mas ainda assim ou por isso mesmo, o seu absurdo se mostra funcional como representação da atualidade do Brasil, de cujo desconjuntamento interno, ou modernização precária, passa a ser uma alegoria das mais eficazes.”

Eu estaria sendo injusto se insistisse nessa acusação. O artigo de Schwarz é brilhante, diria até tropicaliamente brilhante. Não dá um único ponto sem nó, sem embrulhá-lo em camadas de uma ambiguidade tão ousada quanto a do estranho Caetano (estranho Schwarz chamar Caetano de herói estranho, ou afirmar que as primeiras páginas do livro são “muito estranhas”), que por vezes também soa como confusionismo “calculado”, ou encantado com seu virtuosismo retórico. O início do artigo (entre o “não tenho conhecimento de música nem das composições do autor” e o “gosto muito do livro como literatura”) anuncia a bela e elegante luta (mais kung fu, menos MMA) que vem a seguir, o mais recente round entre dois dos brasileiros que mais admiro (tomei todo cuidado para minha amizade com Caetano não influenciar a análise que faço do combate).

Schwarz se apresenta como autoridade do campo acadêmico, que tem legitimidade inquestionável (ele fala do lugar de poder, com a pompa e circunstância dos poderosos) para identificar a “grande qualidade literária”. Há ainda um tom maravilhado com a “novidade” de um músico popular revelado como “intelectual de envergadura”. Não há condescendência na estratégia: Schwarz aceita Caetano como um de seus pares – o artigo parece um ritual de concessão de título de doutor honoris causa (mas Schwarz nem fala que Caetano escreveu seu livro recorrendo apenas a sua memória, sem consultar documentos, ou mesmo sem voltar a ouvir seus próprios discos – o que poderia ser visto, numa banca careta, como afronta diante de regras básicas da academia).

Seria divertido passar todo esse texto citando trechos que revelam momentos pitorescos dessa luta, oscilante entre a análise do estilo literário do texto de Caetano e a verdade (também cheia de estilo) de seu testemunho histórico – oscilação que por vezes causa até vertigem no leitor menos superficial. Sem tempo para essas sérias brincadeiras, vou logo enfrentar o momento central do artigo, o muito citado comentário de Schwarz sobre o comentário de Caetano sobre cena de “Terra em transe”. Por sua vez, para seu golpe mais duro ter eficiência brutal, Schwarz não segue religiosamente as regras acadêmicas, mesmo tendo o texto analisado diante de seus olhos. Na página 78, são citadas as palavras exatas de Caetano: “quando o poeta de “Terra em transe” decretou a falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na plateia, vi, não o fim das possibilidades mas o anúncio de novas tarefas para mim.” Na página seguinte, Schwarz usa aspas novamente para escrever “energia libertadora do povo”. Repare bem: “energia” e “libertadora” passaram para o singular; o povo perdeu as aspas dentro das aspas que tinha na página anterior e em “Verdade tropical”.

Parecem detalhes tolos. Não são. As palavras de Caetano mudam de sentido. Não estou insinuando que Schwarz foi desonesto. Ele realmente parece acreditar que Caetano pensava no singular e sem aspas. Tanto que aplica redução semelhante ao afirmar categoricamente que, segundo Caetano, populismo, cuja morte o poeta de “Terra em transe” decretaria, é o “papel especial reservado ao povo trabalhador nas concepções e esperanças da esquerda”. As consequências dessa interpretação literária são enormes, e nos conduzem para aquilo que mais gosto de pensar sobre o Brasil. Bem que o próprio Caetano avisou que nossas colunas são pequenas para tratar desses assuntos cabeludos. Vou precisar concluir (talvez…) só na semana que vem. Já precisei de duas colunas até para falar de show do Kraftwerk que não vi. Por que o gentil duelo Schwarz/Caetano, avesso a desfechos e interpretações fáceis, caberia numa coluna só?

aliens e locais

05/05/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/05/2012

Chia. Entre em qualquer loja de produtos naturais e você vai comprovar: é a semente da moda, ocupando lugar de destaque nas prateleiras, com muitas embalagens diferentes, geralmente mínimas e caras. Os rótulos dizem que faz um bem horrível. Já testei: parece comida alienígena, digna de ser servida pela Whoopi Goldberg no bar de “Jornada nas estrelas – a nova geração”. Em contato com qualquer líquido, sua casca durinha sofre mutação instantânea ganhando consistência gelatinosa, quase psicodélica. Li em algum local da internet que duas colheres de sopa de chia eram combustível suficiente para sanguinários guerreiros astecas marcharem por 24 horas. Essa informação me deixou um tanto paranóico: chia, quinoa, amaranto… – por que essa onda pré-colombiana, logo agora? Tem a ver com o fim do mundo segundo o calendário maia?

Já deveríamos estar acostumados a essa globalização radical dos paladares. Mas quando chego numa feira, e encontro blueberries e dragon fruits à venda, não consigo deixar de pensar nas minhas férias dos anos 70, quando encontrava primos paraibanos que nunca tinham tocado em uvas ou morangos. Hoje facilidades de transportes e logística comercial transformaram nossas cozinhas em laboratórios de mash-ups culinários juntando ingredientes de origens geográficas disparatadas.

Sou também do tempo em que não havia lojas de koni em cada esquina. No início da década de 80, restaurante japonês na Zona Sul carioca era só um, que não existe mais: o Goemon, na rua Francisco Sá. Fui levado até lá, quando comi sushi pela primeira vez, por um amigo de Tóquio, que estava visitando o Rio. Acabei apresentando o peixe cru para muita gente, inclusive paulistanos que nunca tinham pisado na Liberdade, bairro ainda praticamente inexplorado por quem não tinha família nipo-brasileira.

Não estávamos “atrasados”. O antropólogo Theodor C. Bestor, de Harvard, escreveu um artigo muito esclarecedor sobre a emergência do sushi como comida global, partindo do comércio de atum “bluefin” na Costa Noroeste dos EUA. Até os anos 70, naquele litoral, essa espécie era vítima apenas da pesca esportiva, e geralmente virava ração de gato. No Japão, pelo contrário, era comida nobre. Vários fatores explicam a difusão desse gosto para o resto do planeta. Com a imposição da regra das 200 milhas em muitos países, os pesqueiros japoneses foram expulsos de vários mares e a captura do bluefin se internacionalizou. Ao mesmo tempo houve a emergência econômica nipônica, a moda de comida saudável, a transformação de tudo que tem ar zen em base para estilo de vida sofisticado. Resultado: sushi virou cool, pelo menos até os anos 90, quando, com a crise japonesa, muito peixe que antes voava para Tóquio passou a ser vendido mais barato em mercados locais, e os hashis entraram em processo de orkutização. O que é muito bom: finalmente podemos comer sashimi na Rocinha.

Essa história da popularização do peixe cru dá um ar conspiratório para hábitos gastronômicos. Fica parecendo que nossos paladares são controlados por forças macroeconômicas obscuras, onde as flutuações da Bolsa de Tóquio determinam o emprego do sushiman cearense. Nem tudo é tão amarrado assim. As economias mexicana e peruana não estão bombando a ponto de produzir artificialmente demanda global por chia ou quinoa. Essa tendência pré-colombiana atual deve seguir caminhos mais prosaicos, como aquele que o kiwi percorreu até virar ingrediente comum nas saladas de frutas do Bibi Sucos. Foi uma escriturária de Los Angeles que resolveu importar a fruta asiática para os EUA e batizou-a com o nome kiwi como estratégia de marketing. A história do tomate também é curiosa: no início do século XIX, propagandeado por seus benefícios medicinais, era tão exótico quanto a chia. Demorou, mas acabou se orkutizando como ketchup.

Atualmente, tudo ficou mais acelerado e misturado. Os netos de Vasco da Gama esperavam meses pelas caravelas que traziam canela das Índias. Ninguém poderia sonhar com a complexa rede informatizada de abastecimento dos nossos supermercados contemporâneos. Assim como toda a produção cultural planetária pode ser baixada com poucas carícias na touch-screen, todos os sabores chegam em nossas casas via delivery. Simon Reynolds, além de popularizar o termo retromania para denominar a disponibilidade de toda história da música via internet (e o eterno “regaste” de estilos passados), também anda analisando a xenomania (o contrário da xenofobia) que mistura ritmos de várias procedências geográficas numa mesma pista de dança. Somos todos nômades etnoculturais, remixando informações, coisas, sensações, emoções, não importa onde foram criadas, cultivadas, produzidas.

Claro que o excesso e a abundância geram também efeitos contrários, entre eles a busca do local, do simples antiglobal. Não é a toa que, na lista 2012 das 100 pessoas mais influentes do mundo publicada pela revista Time, Ferran Adrià saúda o chef dinamarquês René Redzepi como “aquele que estabelece o caminho para frente”. Sabemos que Redzepi valoriza o ingrediente que pode ser plantado, pescado, criado nos arredores de seu restaurante. Provavelmente não encontraremos chia em suas mesas. O que pode ser uma decisão sustentável (o comércio global queima muito petróleo). Então teremos que voar para a Dinamarca para provar suas invenções? Gasto de petróleo também. Comer chique e saudável virou dilema ecológico.