Posts Tagged ‘Hélio Oiticica’

barulho diferenciado

10/11/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/11/2012

João Cabral de Melo Neto revela, em poema publicado na seção “Linguagens alheias” do livro “Agrestes”, entre “Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry” e “O último poema” (há versos mais punks?), algo que “contam de Clarice Lispector”. Conto novamente: uma conversa entre amigos, com “dez mil anedotas de morte”, é interrompida pela chegada de outros amigos “vindos do último futebol”, com comentários que refaziam o jogo “gol a gol”. Clarice espera educadamente (educação pela pedra) a animação futebolística esmorecer e faz seu pedido: “Vamos voltar a falar na morte?” Parece, por linhas bem tortas, o que aconteceu nesta coluna: interrompi a conversa sobre nosso país (segundo Brian Eno) para falar na morte de Luis Alberto Spinetta. Agora retomo: vamos voltar a falar no Brasil?

Percebo que o Brasil, também com milhares de anedotas, é meu assunto preferido, ao qual sempre volto. Mesmo quando meu tema era rock argentino, na verdade eu estava falando no nosso país, “fechado demais”. Ou grande demais, um vasto mundo, cercado – lá bem longe – por um deserto dos bárbaros (entre eles, os que nos vendem iPads). Nosso problema não seria complexo de vira-latas, e sim excesso de autoestima (inventamos até o orgulho de ser mestiço – rótulo para aqueles que não têm raça pura, isto é, os vira-latas). Meu defeito também: acredito piamente (mesmo rindo dessa crença) que podemos dar jogo de cintura para o resto do mundo, fazendo chover havaianas coloridas nas areias escaldantes para além de nossas fronteiras nacionais.

Por isso, minha fixação com as roupas de penas que Brian Eno usava na época do Roxy Music. O fato de aquele estilo espalhafatoso (os ingleses dizem “flamboyant”) ser visto com embaraço, ou como piração juvenil, me entristece, ou que torna o mundo mais triste. Passamos a viver sob uma ditadura de um bom gosto minimalista de chatice avassaladora. Tudo é contido, clean, “sofisticado”. Mesmo a contestação política tem bom design, e as passeatas parecem desfiles de Ricardo Tisci. O Brasil não pode entrar nessa onda para ter assento no conselho de segurança artística mundial. Como disse Oswald de Andrade: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.” Logo agora que somos “potência”: parar (o Carnaval) por quê?

Arto Lindsay, nosso melhor embaixador (ainda vou escrever texto só sobre sua obra aqui nesta coluna), já enfrentou sérios problemas buscando traduzir o Brasil moderno para o mundo, sem cortar nossos excessos para tornar nossa imagem mais aceitável para padrões elegantes dominantes. Colaborei com a montagem de seu espetáculo sobre Carmen Miranda para o festival Next Wave da Brooklyn Academy of Music, quartel general do bom gosto “radical”. Acabou que minha principal função foi acompanhar Aurora Miranda na coxia, para passar o texto (“Eu beijei o Mickey Mouse.”) antes de sua entrada no palco. Foi assim que escutei umas diretoras do festival furiosas com a atuação de Regina Casé (pareciam as gralhas que adoram atacar Regina nas “redes sociais” com os mesmos argumentos caretas) ao lado de Laurie Anderson. Elas acusavam: over the top! Respondi, vermelho, com raiva, como se tivesse baixado em mim um Caetano “é proibido proibir”: “ela nasceu over the top e vai ser sempre over the top. O Brasil é over the top, Carmen Miranda era over the top! Vocês querem mergulhar Carmen em gel antisséptico para transformá-la em símbolo cool?”

Ainda não vi o documentário sobre Hélio Oiticica. Regina viu e me contou a reação de nossos amigos mais jovens que a acompanharam ao cinema. Ficaram chocados, assustados. Eles não conheceram Hélio ao vivo. Eu tive a sorte de encontrá-lo pessoalmente algumas vezes, incluindo a abertura daquela exposição no Hotel Meridien (acho que Lygia Clark também estava presente) e em algumas atuações explosivas em debates. Hoje, sinto no ar dos tempos minimalistas (nada contra Robert Morris) uma perigosa tendência: dar um banho de loja da Prada (e de Fundação Prada) em Hélio, tornando sua obra apenas chique, uma espuminha de culinária pós-molecular a ser servida em vernissages com a presença de François Pinault ou Bernard Arnault (feio o pedido de cidadania belga para fugir de impostos franceses – mas o mundo das artes “radicais” adora gente rica, agora também gente rica brasileira, e não liga para esses tipos de deslizes). Há colecionadores que prefeririam que Hélio tivesse parado nos metaesquemas, tão mais vendáveis, não é mesmo?

O mundo não é perfeito, limpinho: Hélio preferiu ocupar o MAM com a escola de samba da Mangueira. Um barulho louco. Talvez a missão do Brasil agora seja fazer o mundo não dormir com um barulho diferenciado do nosso tamanho.

minha (anti)ideologia

09/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/10/2010

Entre as várias declarações inesquecíveis de Andy Warhol, gosto de citar esta aqui: “Não estou tentando educar as pessoas para verem coisas ou sentirem coisas em minhas pinturas; não há nelas nenhuma forma de educação.” Gosto sobretudo por encarnar uma contradição pessoal: Warhol continua sendo um dos meus mais exigentes educadores, com lições que marcaram profundamente a maneira como vejo o mundo ou como quero que o mundo seja. Foi isso que redescobri com a leitura de “Andy Warhol – o Gênio do Pop” (tradução torta, mas não absurda, para “Pop – the genius of Andy Warhol”), livro imagino que recém-lançado no Brasil, encontrado numa mesa de saldos da Livraria da Travessa.

É uma biografia dos anos mais importantes da carreira de Warhol, praticamente toda a década de 60, da sua entrada para mundo das galerias até o tiro de Valerie Solanas. Foi escrita por dois jornalistas mais ligados ao universo da música, Tony Scherman e David Dalton. Um deles, Dalton, foi fundador da revista Rolling Stone. A crítica do New York Times resume minha desconfiança ao ler essas informações na orelha, e depois o meu alívio ao reconhecer que tinha feito uma boa compra, apesar de impulsiva: “A idéia de dois connoisseurs do rock trabalhando na enésima biografia de Warhol não soa muito sedutora, mas eles de fato escreveram um livro excelente, um trabalho de grande clareza e concisão que dá novo frescor para Warhol (e os críticos de rock).”

Esse frescor não vem apenas de fofocas bem pesquisadas, várias delas reunindo até então muito esparsas informações sobre a vida sexual do biografado, ele mesmo um fofoqueiro convicto (“Uma das coisa que sempre gostei de fazer é ouvir o que as pessoas pensam uma das outras – você aprende tanto sobre a pessoa que fala quanto sobre a pessoa que está sendo esculachada. Isso é chamado fofoca, claro, e é uma das minhas obsessões.”) Mas confesso que não sou o melhor juiz para medir o grau de novidade de mexericos do meio das artes plásticas norte-americanas. Não sabia nem que Robert Rauschenberg namorava com Jasper Johns, formando casal abençoado por John Cage. Vivendo e aprendendo.

Para além dos detalhes apimentados, o que mais me interessou na biografia foi a quantidade exuberante de informações sobre o processo criativo de Warhol, com minúcias sobre a gênese das idéias que estão na base da maior parte dos trabalhos produzidos nessa época, das latas de sopa Campbell’s aos shows com o Velvet Underground. Se, mesmo para o samba, idéia é que nem passarinho (“é de quem pegar primeiro”), no Pop o ambiente incentivava constante criação coletiva, e o esvaziamento glamuroso da noção de autoria. Tudo bem assumido, com humor e densidade filosófica: “Eu nunca fiquei envergonhado ao perguntar para alguém, literalmente, ‘O que devo pintar?’ porque o Pop vem de fora”.

O gesto de Marcel Duchamp, que ainda produziu objetos únicos, entrou para a linha de produção de massa. Fazer mais do mesmo, como uma máquina, ou deixar que os outros cuidem do artesanato de cada obra, virou motivo de orgulho: “Eu fiz 50 telas com Elvis em um único dia!” A mesma coisa dita com outras palavras: “Todo mundo pode fazer o que eu faço.” Tudo fora. Plástico, artificial, não-original. Nada dentro. Ele mesmo dava a fórmula: “Se você quiser saber alguma coisa sobre Andy Warhol, olhe apenas para a superfície de meus quadros e filmes e de mim mesmo – e ali estou. Não há nada atrás disso.” No vazio, pop-zen, e no gosto pelas coisas do mundo (“tudo é bonitinho”) está a salvação. “Se eu vou me sentar e ver a mesma coisa que vi ontem, não quero que ela seja essencialmente a mesma – quero que seja exatamente a mesma. Quanto mais você olha para a mesma exata coisa, mais o sentido vai embora, e você se sente melhor e mais vazio.”

A estratégia de Warhol foi tão inteligente, e tão profissional, que a arte depois da Factory tem que partir de onde ele nos deixou, desamparados e iluminados no grande supermercado da vida, transformada num grande vazio, renovador da possibilidade de crítica. Qualquer ação artística que não leve esse golpe em consideração vira tentativa ingênua e burra de restauração de uma ordem caduca ou simplesmente fascista. Sempre considerei Warhol de esquerda, da melhor esquerda. Como lembra um componente do coletivo russo Chto Delat?: a pergunta da direita é “quem é o culpado?”, a da esquerda é “que fazer?”. O Pop, em seu momento de maior genialidade, era um plano de ação para um mundo sem nenhuma ilusão, sem boba “interioridade”, sem culpados (porque sem Culpa).

Fiquei animado ao reler essas coisas, parte essencial de minha (anti)doutrina, no meio desse tiroteio religioso-eleitoral, sob o qual o Rio vive um momento privilegiado em termos de exposições, com a série Apocalipse de Keith Haring (o melhor discípulo de Warhol junto com o Kraftwerk?) e William Burroughs (Warhol declarou querer viver dentro de uma cena de Naked Lunch) exposta até novembro, em algum lugar do Centro (a Caixa Cultural) entre o buraco na rede de pingue-pongue de Waltércio Caldas, os aviões-árvores de Nuno Ramos, as araras arrancadas da Tropicália de Hélio Oiticica (nunca mais penetraremos na obra completa?), o Islã do CCBB e qualquer mídia dos 2 RochaPittas. Muita coisa para fazer, e fazer novamente, para nos inspirar no dia da votação.