texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/06/2014
Em 1978, foi realizado o primeiro festival internacional de jazz em São Paulo. Acompanhei todas as oito noites de shows, de Piazzola a McLaughlin, pela TV. Sim, a TV transmitiu tudo, para todo o país. Inclusive as várias horas, já na madrugada, da apresentação apoteótica de Hermeto Pascoal. Ficou bem marcado no recanto mais alegre da minha memória o canto de Hermeto chamando convidado especial para a festa de improvisação radical: “Stan Getz / vem cá / tocar / um forró”. Reencontrei esta semana a gravação desse encontro na internet. OK, boa redescoberta. Mas eu não deveria estar escrevendo uma coluna sobre a Copa iniciada ontem?
Meu assunto é Copa. Recomeço: não sonhei, o festival foi realmente transmitido pela TV. Hoje, mesmo a TV Educativa (se existisse ainda com esse nome) não faria aquela transmissão, ao vivo, integral. Porém, naquela época, eram tão raros eventos de grande porte no Brasil, que todos ganhavam cobertura eufórica (temos festival de jazz!) da mídia ainda bem centralizada (não havia nem computador pessoal). Logo depois, o Rock in Rio também “parou” o país. Nina Hagen ganhou fotos nas primeiras páginas dos jornais. Atualmente há até saturação de festivais de música. Por mais bem promovidos, é cada vez mais difícil que ultrapassem os limites de seu nicho. O mercado de entretenimento e eventos cresceu loucamente (se multiplexificou – como compôs Caetano e canta Gal, “neguinho também só quer saber de filme em shopping”) no Brasil. O crescimento inclui, talvez necessariamente, fragmentação para públicos de interesses diversos. Todos levando desvantagens e vantagens em tudo.
Morei por um ano em Chicago, no início dos anos 1990. Já havia mais de uma centena de canais na TV no cabo. Não me lembro de ter visto a cidade ou a mídia ser tomada por um único assunto, a não ser a Guerra do Golfo (com aquelas fitas amarelas em casas e prédios). Talvez tenha percebido um número exagerado de camisetas de feira hippie no dia que o Grateful Dead tocou no estádio Soldier Field. Quando o Chicago Bulls ganhou – depois de vários anos sem títulos – o campeonato principal do basquete dos EUA, tive que andar muito para encontrar comemoração de rua. Nenhum acontecimento parecia ter o poder de contagiar todos os grupos sociais no mundo “desenvolvido”.
Chegando então na Copa: a evidência de que não vemos todas as ruas pintadas de verde e amarelo é, para além dos protestos contra os gastos com o evento, sinal também de “desenvolvimento”, que “chegamos lá” com mercado diversificado, que nunca mais seremos “possuídos” por uma “primitiva” paixão coletiva? O Brasil deixa de ser aldeia isolada, e vira terra complexa não mais controlada por pauta comum de sentimentos e atividades? O multiculturalismo venceu? Nossa identidade vai ser cada vez mais múltipla, com mundos (mesmo enormes) separados?
Recomendo a leitura de “Formação da culinária brasileira”, livro de Carlos Alberto Dória que certamente é um dos lançamentos mais importantes deste ano (antigamente seria mais fácil dizer: “ano de Copa”). Posso, irresponsavelmente, tentar resumir seu argumento em poucas palavras: o paladar no Brasil vive momento de grande transformação, deixando de lado o amálgama de pratos/receitas que encantavam, por motivos diferentes, Gilberto Freyre e Camara Cascudo, e passando a realizar experiências baseadas em “ingredientes” (incluindo as Pancs – “plantas alimentícias não convencionais”), em atitude pós-‘terroirs’ (DOCs, AOCs etc.), e talvez já pós-“locavorismo” (o restaurante Noma não é mais novidade). Um dos sintomas: o arroz e feijão de todo PF cede lugar à profusão de cores de gastronomia por quilo, cada vez mais eclética (muitos cartazes propagandeiam orgulho de oferecer chia ou quinoa) e popular. Dória mostra como essas tendências todas são produzidas num caldeirão de discursos políticos, econômicos, médicos, ambientalistas, nutricionistas, resultando em identidades (com pé na cozinha) rapidamente mutantes.
Não parece mais haver espaço para o processo descrito no livro “Pasta e pizza”, de Franco La Cecla (lançado pela Prickly Paradigm Press, pequena editora de Chicago já elogiada por aqui), de invenção da culinária nacional italiana. Ali aprendemos que foi só no final do século XIX, início do século XX, que o macarrão se difundiu pela Itália, também com a ajuda dos imigrantes que já viviam no continente americano (e não foi Marco Polo quem trouxe a “pasta” da China). O mundo era bem mais simples e pitoresco naquela época? Questão de ponto de vista. Hoje a culinária italiana voltou a ser quebra-cabeça de gostos regionais, em mercado globalizado cada vez mais “sofisticado”.
Então estamos aqui, com nossos paladares voláteis e micropaixões contraditórias. Precisamos ser seletivos, cuidadosos: boa Copa para quem gosta de Copa.