carnavais

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/02/2015

No início dos anos 1980, durante o carnaval, eu circulava sempre pela Rio Branco, para me misturar aos desfiles do Cacique de Ramos e do Bafo da Onça. Fausto Fawcett, na mesma década, cantava/ordenava a dissolução de egos na matéria em movimento. Não havia nem superego que resistisse ao movimento browniano daquela multidão que ocupava nossa avenida central. Em questão de segundos, todos seus quilômetros eram preenchidos por um único corpo pulsante misturando jaguares e índios arquetípicos. Anos depois, aquela coisa toda – como por um milagre – foi desaparecendo. Eu insistia em voltar para a Cinelândia, mas o ambiente era triste. Gatos pingados fantasiados não conseguiam produzir sensação de folia. Quem é muito jovem não acredita quando conto que houve anos em que o carnaval no Rio tinha clima de “Adeus, batucada”.

Hoje, novos blocos, cada vez mais gigantescos, reconquistaram as ruas, para surpresa geral. Não foi obra de política pública de “resgate” do carnaval popular de rua. Tudo aconteceu como um experimento de ciência do caos, fora das previsões das autoridades mais “antenadas”. Foi como rebelião do inconsciente carioca, que não se conformou com a obrigação de ter que viajar para Salvador ou Recife se quisesse brincar na rua durante os feriados carnavalescos. Seguimos o grito de guerra do Cacique: “vou festejar”. Aqui mesmo.

Bela lição para quem estuda ou promove a cultura: ainda bem que o mundo é imprevisível. Festa é vontade mutante. Ninguém sabe onde, quando e como vai aparecer ou desaparecer. (Talvez como tudo na vida, mas na festa essa característica geral é mais evidente.) Nenhum MBA vai enquadrá-la em modelo de negócio estável. É possível apenas aproveitar o embalo, eterno enquanto dura.

Sonho com uma rede global de carnavais, uma organização das nações unidas da folia. Seria a atualização Século XXI de um efeito colateral da imposição do catolicismo por colonizadores lusitanos. Pensei nisso quando passei um carnaval em Goa, na Índia (uma das músicas que faz mais sucesso no seu desfile ainda é “Mamãe eu quero”). Tive contato também com manifestações carnavalescas em Malaca, na Malásia (era uma espécie de entrudo, com o povo que fala cristão – ou kristang, ou papiá kristang, idioma crioulo descendente do português com estrutura gramatical do malaio – fazendo batalha de baldes d’água na rua), e na Guiné Bissau (o maior carnaval africano – ver algumas imagens no episódio do Navegador, programa da GloboNews, na próxima segunda-feira). Todos: locais em que Portugal deixou suas marcas malucas. Tanto em Goa, quanto em Bissau há um fenômeno curioso: indianos fantasiados de indianos, africanos fantasiados de africanos, como se a festa fosse a única ocasião em que podem ser quem “verdadeiramente” são (e então percebemos que tudo é mesmo fantasia e que “verdade é uma ilusão”, ou ao contrário, dependendo do contexto).

Claro que seria justo ter o português como língua oficial da ONU foliã. Mas não poderia ser o único. Há carnavais em Veneza, na Alemanha. E há o carnaval de Trinidad e Tobago, com seu filho, no meio de cada ano, em Notting Hill, Londres, Inglaterra. É a maior folia do Caribe, a grande festa do calypso, hoje soca (corruptela de soul-calypso, filha da união do calypso com o funk). Essa apropriação do pop dos EUA revigorou a tradição festiva de Trinidad e Tobago, que cresce a cada ano e se mantém única, “tipicamente” local. Assim como o reggae foi incorporado ao carnaval de Salvador transformando-se em samba-reggae, que é baiano demais. Sempre escrevo: identidade nunca pode ser pensada como algo estático, acabado. Ou frágil, a ponto de qualquer ameaça externa, ou mudança mais decisiva, condená-la à extinção. Os carnavais são laboratórios que testam e expandem os limites das tradições. Como se identidade fosse uma grande brincadeira (e não é?). Como se o mundo fosse terminar na quarta-feira.

Quando a soca se tornou muito popular, pensei que steel bands – orquestras com aquelas panelas de aço, deliciosa invenção de Trinidad e Tobago – poderiam desaparecer. Mas elas continuam lá, criativas e magníficas. Essa constatação não quer dizer que boas tradições não correm riscos de extinção. Afirmo apenas que a dinâmica é incontrolável. A melhor política de preservação não é garantia de eternidade. Eterno Deus Mu-dança.

Os instrumentos das steel bands foram novidade um dia (assim como os surdos das escolas de samba), mais recente do que parece. Quem pode saber se no próximo século um dos melhores carnavais do planeta não acontecerá na Suiça e na Áustria, com bandas de hang, o novíssimo instrumento de percussão (criado depois de 2000) tocado com maestria pelo percussionista dos shows da Bjork, Manu Delago?

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