texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/08/2013
Ficha que já deve ter caído “pra geral”: o slogan “saúde e educação no padrão Fifa” é bonitinho, mas ordinário. Vazio. Quem retutiou o meme, ou quem saiu para as ruas com essas palavras escritas na cartolina (ou diagramadas para projeções nos edifícios) não deve saber realmente o que responder quando pergunto: o que é esse padrão Fifa? Queremos dar banho de loja em nossos hospitais e escolas para transformá-los em espaços parecidos com o novo Maracanã, com seu modelo de negócio caro e insustentável? Os professores serão patrocinados pela Nike? A “experiência de consumo” em lobby de uma UPA deve ter aquele cheirinho rico da sala de embarque para primeira classe dos voos de longa distância da Cathay Pacific? (Continuo copiando Ballard.) E desculpa lançar pergunta ainda mais complicada, que provavelmente não poderá ser respondida em 140 caracteres: estamos buscando que tipo de saúde e educação?
Gostei da brincadeira: você prefere uma sala de aula escurinha-frenética-bate-estaca estilo Abercrombie ou mais chique-culta estilo Prada desenhada por Rem Koolhaas? Coloco apenas essas opções imaginando que CIEP de Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro não deve atingir o tal padrão Fifa. E a clínica médica terá quartos parecidos com os de um hotel-cassino-design de Las Vegas? Claro: conteúdo não importa, as pessoas vão ficar mais sábias ou curadas só pela imersão no jogo de branding (que pode gerar game exclusivo para Playstation da Sony ou filme catástrofe de Hollywood). Afinal, qualquer mal-estar poderá ser diagnosticado como virose por um aparelho de ressonância magnética de última geração e o cliente sairá satisfeito do banho radioativo já com receita de antibiótico caríssimo (e que, obviamente, ainda não tem genérico). Os alunos que pagam mais na mensalidade, ou os cadastrados no programa de fidelidade do cartão de crédito, serão identificados por pulserinhas VIPs, ou por google glasses que transmitirão mais informações também exclusivas (obviamente acompanhadas de publicidade). Tanto faz se é HSBC Arena, HSBC High School ou HSBC Hospital. Tudo é entretenimento. Melhor assim: nem os médicos nem os professores entendem essa “generation”. Só sabem que pacientes e estudantes querem comprar o ingresso que dá acesso ao multiplex preguiçoso que chamamos de boa vida.
Você pode retrucar que estou levando as coisas muito “ao pé da letra”, que na verdade o que as pessoas pedem é que saúde e educação sejam tratadas pelos governos com verba, seriedade e atenção que são dedicadas à construção dos estádios. Sobre seriedade e atenção: torço para que daqui a dois anos as escolas e hospitais do padrão Fifa não estejam caindo como o Engenhão. Sobre verbas: já conversei com inúmeras diretoras de escolas públicas (sim, eram baianas, piauiesenses, gaúchas, paraibanas, todas mulheres incríveis, totalmente dedicadas a seus trabalhos) que me falaram que o problema não é realmente dinheiro, mas o repasse e a administração desse dinheiro, além da coragem na aplicação de projetos pedagógicos inovadores (para ninguém dizer que não falei de homens: cito José Pacheco, o português da Escola da Ponte, que agora está no Brasil e em todas as entrevistas reverencia nossos grandes pedagogos começando por Paulo Freire; cito também, novamente, Nelson Pretto, que no Esquenta! deste domingo falará: “a gente precisa de mais dinheiro para uma outra educação, uma educação do compartilhar – e, enquanto o dinheiro não vem, temos que inventar um jeito valente de trocar o ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’ para ‘farinha pouca pirão para todo mundo'”.)
Dito isso, devo declarar (vai parecer contraditório, mas não é): sou convictamente a favor da realização da Copa e das Olimpíadas por aqui. Gosto de festas, grandes festas, que podem ou não consumir muito dinheiro (mas necessariamente consomem muita energia). Já escrevi nesta coluna: o Brasil tem talento para fazer festas, poderia se especializar nisto: alegrar o mundo. Não concordo que para festejar precisamos primeiro ser ricos, educados e saudáveis (seria o mesmo que decretar: “orgasmos só depois da Revolução!”). Festa boa educa e é vitamina. Não estou nem falando de economia da festa, dos empregos que isso pode gerar, das melhorias de infraestrutura. Mesmo Jacques Rogge, presidente do Comitê Olímpico Internacional, parece envergonhado na sua defesa de Londres 2012 – fala mais do “legado” para “regeneração econômica e social” do que dos jogos, da farra dos jogos. Fecho com Georges Bataille, em sua “A noção do dispêndio” (uma nova tradução brasileira foi publicada em boa hora): as festas “têm em si mesmas seu fim”. Sou petulante: a Fifa precisa esquecer seu padrão. O Brasil pode ensinar a Fifa e o COI a fazer uma grande festa (com gastos transparentes), fora dos padrões caretas do esporte convertido em espetáculo chato. O Brasil pode salvar a Fifa, e o mundo. Maluco, eu?