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colaboração

28/03/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/03/2015

Iris van Herpen pode ser apresentada como inventora holandesa. A revista “Time” escolheu suas roupas produzidas em impressoras 3D como uma das “melhores invenções de 2011”. Foi procurando exemplos de utilização bem criativa dessa nova técnica de impressão que descobri seu nome. Um hiperlink depois e já estava no seu site, que me apresentou a uma multidão de outros artistas/pensadores que até então desconhecia. Sempre defendi por aqui que a moda é hoje um dos territórios mais inovadores da cultura contemporânea. Mesmo assim não estava preparado para ser levado tão longe pelo trabalho de uma única estilista.

Claro, Rei Kawakubo ou Vivienne Westwood são igualmente mestras em colaborações transdisciplinares. Mas parecem mais focadas, perseguindo algumas trilhas bem definidas, apesar de todas as rupturas. O trabalho de Iris van Herpen busca a diversidade de maneira ainda mais extrema, incluindo os temas que inspiraram cada uma de suas coleções desde a estreia, em 2007.

Citarei alguns exemplos, os que me deixaram mais espantado, curioso e alegre. Vários assuntos queridos desta coluna foram materializados nas passarelas. Começando pelo desfile mais recente, o do Outono/Inverno 2015-16, que explorou a ideia de terraformação, o projeto de modificar outros planetas para que possam ter biosferas terráqueas (para mais informações vide minha coluna sobre a literatura de Kim Stanley Robinson). O texto de apresentação usa outras palavras que não esperamos encontrar normalmente em press-releases de estilistas: estruturas biomiméticas, infinitos “hackeáveis”, geologia mineral, couro cortado a laser. Minha praia total.

Voltando no tempo a mistura de conceitos das mais variadas procedências vai ficando explosiva. No ano passado as duas coleções tiveram como títulos “Movimentos magnéticos” e “Biopirataria”. A inspiração para a primeira veio de uma visita que Iris van Herpen fez ao CERN, o gigantesco acelerador de Genebra, que produz campo magnético 20 mil vezes maior que o da Terra. “Biopirataria” apresentou modelos flutuando em posições embrionárias dentro de úteros artificiais, tudo para discutir a comercialização de sequenciamento genético e a atual confusão público/privado no mais íntimo de nossos corpos.

Em 2013 suas roupas viraram orquestra de instrumentos musicais eletrônicos. Antes seus desfiles já tinham sampleado imagens de microscópios eletrônicos e fumaças de refinarias. Obviamente: não há pessoa no mundo que domine todas essas áreas de conhecimento. Por isso a criação de Iris van Herpen está baseada em intensa colaboração, com cientistas, arquitetos, escultores, coreógrafos, músicos, cineastas. A lista de créditos de cada coleção impressiona e por isso seu site hoje funciona para mim como enciclopédia de novidades, onde sempre sou apresentado a outras pessoas que me interessam demais. Não há espaço para escrever sobre todas elas. Recomendo que cada leitor faça suas próprias descobertas. Seleciono aqui apenas alguns nomes que quero passar adiante.

O arquiteto canadense Philip Beesley já colaborou em várias coleções. Seu “método” entrelaça desenho industrial, prototipagem digital, engenharia mecatrônica (seja lá o que isso for), vida artificial e arquitetura interativa (as construções reagem a atividades naturais e dos seres vivos em seu interior e ao seu redor). Os resultados, por incrível que pareça, são ambientes/instalações de beleza alienígena estonteante e/ou assustadora, tipo vegetação do planeta Pandora ou enxames de monstros que nem Sigourney Weaver conseguiria combater. Alguns deles levam bem a sério o conceito de hilozoísmo e panpsiquismo de maneira que só tinha encontrado antes na ficção científica de Rudy Rucker, muso desta coluna.

Aleksandra Gaca é uma designer têxtil polonesa. Sua especialidade tem sido a criação de tecidos a partir de novos materiais, ou novas maneiras de produzir materiais. Ela também trabalha com “architextiles” que podem ser usados em construções, substituindo paredes e divisórias com vantagens sustentáveis (circulação de luz, purificação do ar etc.). A austríaca (hoje trabalhando no Suprastudio da UCLA) Julia Koerner usa impressoras 3D e tecnologia robótica para misturar arquitetura, moda e design. O designer holandês Jólan van der Wiel inventa processos em que os objetos adquirem suas formas fora da influência humana.

Em cada um dos sites desses criadores encontro outros nomes formando redes de colaboração cada vez mais complexas. Roupas e objetos passam a circular por outros cenários, como os shows e clipes de Bjork, que recentemente sempre apresentam invenções de Iris van Herpen e sua turma. É assim que o mundo hoje segue adiante.

 

Rede Sarah

28/02/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/02/2015

O doutor Campos da Paz faleceu há pouco mais de um mês. Precisamos continuar a homenageá-lo. Para isso, nada melhor do que aprender com os ensinamentos de sua rica trajetória de vida. Sabemos que saúde pública é um dos principais problemas do Brasil. Nenhum programa nessa área deve ser inventado sem levar em consideração a história, as batalhas e as conquistas da Rede Sarah, criação muito original do doutor Campos. Falo de dentro, sem distanciamento: hoje sou conselheiro dessa instituição. É uma grande honra poder contribuir para seu trabalho, garantia de melhores condições de vida para muitos brasileiros, e que inspira outras experiências de medicina em vários outros países, tanto pobres como ricos. Para entender a razão para essa minha convicção vou tentar resumir o caminho bem pessoal que me aproximou, no pior momento de minha vida, da Rede Sarah e do doutor Campos.

Muitos leitores devem lembrar que há 14 anos meu irmão Herbert sofreu um grave acidente, no qual perdi minha cunhada Lucy. Naquele período de tristeza avassaladora, um conforto foi receber generosas ofertas de ajuda, tanto de amigos próximos quanto de desconhecidos. Havia a necessidade de fazer escolhas de tratamentos para dois tipos de lesão, a medular e a cerebral. As opções eram radicalmente díspares. Hoje consigo até rir quando penso no seguinte dilema quase político: houve convites para ir para Cuba e para Miami. Como tomar a decisão? Gosto de estudar: mergulhei em livros e em revistas médicas procurando a fronteira do conhecimento nessas áreas.

Ainda bem que as neurociências já estavam vivendo momento de popularização. Em capítulo de António Damásio encontrei a descrição de um problema que imaginei ter a ver com o que estava vivendo em casa. Nem pensei duas vezes: fiz uma busca na internet e consegui o endereço eletrônico de Damásio. Estava tão desesperado que mandei imediatamente email para ele, na cara de pau, explicando a situação. Para minha surpresa, logo recebi sua resposta, com indicação do nome de médico de Iowa que poderia me orientar melhor. Várias mensagens adiante, um conselho: não havia motivos para tratamento longo e/ou custoso fora do Brasil. Era importante para a melhora a permanência perto da família. O tal médico de Iowa terminava sua correspondência comigo indicando o nome de uma das maiores especialistas em reabilitação neuropsicológica do mundo: Lúcia Willadino Braga, hoje presidente da Rede Sarah.

Tomei coragem novamente e escrevi para a doutora Lúcia. Li tudo o que podia sobre a Rede Sarah. Outros pacientes me alertaram inclusive para me preparar para um eventual encontro com o doutor Campos. Ele seria duro, não tentaria nos seduzir com falsas promessas de cura. Acompanhei a internação do Herbert no Sarah Brasília. No andar onde ficam os pacientes com lesão cerebral convivi com sofrimentos que não imaginava suportáveis por nenhum ser humano, tudo agravado pela desigualdade social brasileira. Uma vizinha de leito tinha viajado, enfrentando dores extremas, de canoa e kombi, partindo de localidade remota da Amazônia. Era um panorama terrível do Brasil. Mas ao mesmo tempo estávamos ali reunidos em hospital público, recebendo um tratamento de excelência, que antes eu não tinha ideia que existia no país.

Quando escrevo tratamento de excelência, não estou pensando em luxo. Hoje, há uma tendência no serviço hospitalar privado que confunde qualidade com aparência de hotel cinco estrelas. As pessoas fingem não perceber como isso encarece de forma desnecessária os tratamentos. Na Rede Sarah tudo é digno, e de ponta, mas nada é ostentação. Muitas soluções, como prédios construídos para aproveitar luz e ventilação naturais, foram produtos da parceria criativa entre o doutor Campos e o arquiteto Lelé. Não entendo a razão para objetos inventados nas oficinas da Rede Sarah não sejam adotados em outras casas de saúde. Como aquelas camas, leves e de design lindo, bem diferentes daqueles monstrengos eletrônicos importados, que devem custar pequenas fortunas, além de consumir energia e manutenção difícil. (O pior é que vejo muita gente acreditando que hospital bom tem que ter esse tipo de cama cara. Até quando vamos ignorar ou desprezar as boas soluções criadas por aqui?)

Tive o privilégio de conviver com o doutor Campos nas reuniões do Conselho. Ele estava na cadeira de rodas, com aparelho de respiração. Mas falava animado dos livros que queria escrever. Sabia que agora tinha tempo, pois preparou equipe brilhante para continuar a missão da Rede Sarah. O tempo foi curto. Mas sei que um livro está pronto e que a qualidade do atendimento da Rede Sarah permanecerá como sua melhor lição.

espaço público

03/01/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/01/2015

Ano novinho. Dia 2 apenas. Para recomeçar a coluna com o pé direito, uma boa notícia do fim de 2014: o financiamento coletivo da “Piseagrama” – revista que se apresenta adequadamente como “espaço público periódico” – foi um sucesso. Agora podemos ter certeza que nos próximos meses teremos novos números dessa publicação que deveria ser conhecida por muito mais pessoas além das 998 que deram seu apoio via “Catarse”. Confesso que só descobri a “Piseagrama” recentemente, ao receber pacote com as seis edições já lançadas, além de três livros criados pelo mesmo coletivo baseado em Minas Gerais. Estou ainda vivendo sob o impacto do concentrado de boas ideias. Enquanto espero a “Piseagrama” 7, farei aqui lista de assuntos sugeridos em suas páginas anteriores (elas podem ser acessadas na internet, todas com licença Creative Commons autorizando de antemão usos não comerciais) formando um guia de ações para inspirar geral em 2015.

Vale antes citar como os próprios editores da revista definem seu campo de reflexão/militância: “PISEAGRAMA é uma revista sobre espaços públicos: existentes, urgentes e imaginários. A revista articula e promove relações entre as artes, a política e a vida cotidiana […] sempre com foco na noção de público. Além da publicação, PISEAGRAMA realiza e promove uma série de ações em torno de questões de interesse público como debates, microexperimentos urbanísticos, oficinas, campanha com propostas para as cidades, loja itinerante e publicação de livros.” O que mais gosto (eu que admiro fazedores): quase todas as ideias podem ser colocadas em prática imediatamente, se houver “vontade política” para tal.

Exemplos: o número de estreia de “Piseagrama” tinha como tema geral o “Acesso”. Um artigo de Kevin Kelly, ídolo desta coluna, explica o óbvio: acessar – para indivíduos, para sociedades, para economias etc. – é “melhor que possuir”. Outro artigo revela como um trio de prefeitos de Bogotá – Antanas Mockus, Enrique Peñalosa e Luis Eduardo Garzón – conseguiu transformar a vida de sua cidade com ações simples e corajosas, que podem ser copiadas (sem vergonha, o que é bom deve ser copiado) em nossos municípios. Outra característica deliciosa da revista é a combinação de fotos e textos curtos na capa/contracapa. Nessa edição vemos um hidroavião pousado com barquinho trazendo passageiros para terra firme. A pergunta que nunca deveria calar: por que trocamos o líquido por dispendiosas pistas de concreto?

Número 2: tema “Progresso”. Ou qual o verdadeiro significado de progresso. Meus destaques: os belos mapas desenhados pelo povo indígena tikmu’un; o estádio provisório (todo ano é montado e desmontado pela população local) La Petatera de Colima; as vantagens de “não fazer nada”; a “post-it city” de Martí Peran. Por que valorizamos o permanente e caro?

Número 3: “Recreio”. Dez maneiras incríveis de perder tempo. Arte do alemão Joachim Schmid com fotografias de campos brasileiros de futebol de várzea capturadas do Google Earth. A ocupação pública de terrenos baldios em Sevilha. E a capa lembra o estonteante trampolim da praia de Icaraí, Niterói.

Número 4: “Vizinhança”. Texto de Vilém Flusser sobre exílio e criatividade. Capa com foto de Haruo Ohara com pista para longa e pouco conhecida história: o loteamento das terras da companhia inglesa Parana Plantations e saga dos migrantes no interior paranaense.

Número 5: “Descarte”. Tradução de panfleto de 1932 inventando a “obsolescência programada”, estratégia vendida como salvação da economia (alguém pensou em iPhone 6?). Novas maneiras de usar/pensar o lixo. Novas maneiras de usar os (e cuidar dos) rios. O que fazer com carros abandonados. A genial moeda Euroafrican do senegalês Samba Mballo. Lançamento de camisetas e bolsas com hashtags sensatas: “#uma praça por bairro”; “#pescar e navegar no Tietê” (gosto também da linha infantil: “#um balanço por árvore” etc.).

Número 6: “Cultivo”. Proposta novamente bem prática/sensata: trocar gramados (caros de manter, sugadores de água preciosa, nos quais somos proibidos de pisar) por “jardins comestíveis” ou “jardins produtivos”. Quem pode ser contra?

Os três livros editados pelo pessoal da “Piseagrama” também deveriam ser copiados em todas as cidades. “Domesticidades” é um guia de bolso que se apropria de fotos publicadas na internet por corretores imobiliários. O “Guia Morador” traz dicas de bicas, hortas, pássaros e até fantasmas de Belo Horizonte. O “Atlas Ambulante” detalha itinerários, ferramentas e até partituras de vendedores que circulam diariamente pela capital mineira.

Eu disse: muita ideia-vitamina para quem não quer ficar parado em 2015. Comece logo a pisar a grama.

efêmero eterno

23/06/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/06/2012

Cedric Price foi arquiteto que construiu quase nada. E mesmo que tivesse construído, teria se alegrado com o desaparecimento de todos seus edifícios, para darem lugar a outras obras. Tentaram tombar o Inter-Action Centre, de Kentish Town, periferia de Londres, um de seus poucos projetos que saíram do papel. CP, como era conhecido, fez campanha contra o tombamento. O Inter-Action Centre, formado por estruturas modulares móveis para se adequar ao uso que a comunidade ia criando para cada um deles (inclusive – pioneiramente – contêineres, hoje onipresentes em projetos pós-pós-modernos), apresentava instruções para sua demolição. Em outras palavras: tinha prazo, também a ser definido por seus usuários, de validade. Seu criador foi o principal proponente de uma quarta dimensão para a arquitetura: além de comprimento, largura, altura, cada edifício deveria ter seu tempo.

CP venceu. Hoje, para ser moderninho, qualquer projeto tem que ter algo pop-up. Todo planejamento urbanístico, para se vender, precisa ser também “não-plano”, título de artigo-manifesto que CP assinou em 1969 junto com o pessoal da New Society, revista britânica. Ninguém quer ser tachado de arquiteto ou urbanista autoritário, como foram nossos ancestrais modernos, que – dizem os críticos – queriam impor o caminho da felicidade para toda humanidade. Claro, na apropriação atual, muitas das ideias de CP perdem grande parte de seu radicalismo. Há até um shopping center pop-up, “o primeiro do mundo”, em Shoreditch, o bairro ex-mais-cool de Londres: é chamado BoxPark e formado – óbvio – por contêineres. O mercado é esperto, tem necessidade do radical para legitimar as vendas em tempos de consumo consciente Rio + 20. No BoxPark, a loja da Calvin Klein convive com a da Anistia, a livraria da Phaidon fica embaixo do Frae Frozen Yogurt. Tudo junto e misturado.

Essa mania pop-up vai ser cada vez mais onipresente. Começou devagarinho, como samba de Martinho da Vila. A Comme des Garçons, grife japonesa, lançou sua primeira “guerrilla store” em Berlim, 2004, longe dos bairros da moda (os guerrilheiros economizavam em aluguel e também arquitetura – o “conceito” exigia um ambiente com aparência “caindo aos pedaços”), aberta apenas por um ano. Dali para frente, o pop-up pipocou por todos os lados. O chique virou temporário: de museus (como o Guggenheim Lab, de Nova York, patrocinado pela BMW) a boates (como o Double Club, que o artista plástico Carsten Holler criou em Londres, patrocinado pela Prada, cuja fundação adora eventos efêmeros, tanto que no início deste ano lançou um museu 24h em Paris, assinado pelo artista plástico Francesco Vezzoli e o pessoal do Rem Koolhaas, por sinal um fã confesso de CP). É muita gente “formadora de opinião” mundial junta.

Talvez o Pritzker não seja o maior prêmio da arquitetura contemporânea. Cada vez mais prestigioso é o convite para projetar um dos pavilhões que a Serpentine Gallery apresenta anualmente, desde 2000, nos Kesington Gardens de Londres. Mais uma vitória indireta de CP: cada pavilhão tem prazo de validade, só dura de junho a outubro. Parece ironia, mas é sinal de tempos dominados pelo pop-up: os arquitetos mais importantes do mundo, de Oscar Niemeyer a Zaha Hadid, acabam competindo entre si para edificar algo que desaparecerá poucos meses depois de inaugurado. Isso é o que torna o pavilhão mais interessante: aprendemos a preferir o flexível ao duro, o inconstante ao permanente, a mudança ao eterno.

O pavilhão de 2012, que acaba de ser inaugurado ao lado da Serpentine Gallery, vai além: é meta-pop-up, preocupado em “resgatar” (a obsessão pelo resgate é o outro lado da moeda do culto do transitório) a memória dos pavilhões anteriores. Sua criação já foi processo que combina bem com o Zeitgeist: aconteceu basicamente via Skype, conectando os arquitetos suiços Herzog & De Meuron (autores da Tate Modern e do Estádio Nacional de Beijing) e o artista plástico chinês Ai Weiwei (que continua com o passaporte confiscado pelo seu governo comunista – ou pós-capitalista?). O texto que explica a obra ao lado do pavilhão (não encontrei cópia na internet) é brilhante: junta arqueologia e fantasmagoria urbanas para nos incentivar a entrar numa “escavação”, situada abaixo de uma plataforma “flutuante” baixinha, coberta por lençol d’água que pretende refletir o céu da cidade.

Quando emburacamos, fica aquela sensação característica que toma conta de nossos neurônios em muitos eventos hypados: mas é só isso? Melhor seria ler o texto e ficar imaginando o lugar, ou criando nossas próprias narrativas a partir das ideias chino-suiças. Ainda bem que é estrutura temporária. Depois que desaparecer, poderemos contar para quem não foi como era incrível.

Desaparecer? Algo dali não vai desaparecer: as paredes, chão, lugares para sentar são todos de cortiça. Prepare-se: cortiça vem com tudo em termos de material arquitetônico. Daqui a pouco haverá uma loja no seu shopping (pop-up ou não) preferido toda de cortiça também. Mas haverá permanência mais concreta: o pavilhão foi patrocinado e comprado pelo casal Usha e Lakshmi N. Mittal (bilionário indiano do aço, mais rico que o Eike Batista) e segundo o site da Serpentine Gallery “entrará para sua coleção particular”. Nunca tinha ouvido falar em coleções particulares de pavilhões pop-up. Não importa minha ignorância: a gente se acostuma com tudo nesta vida, mesmo com o efêmero eterno.

desenhar

21/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/12/2011

Meses atrás, nesta coluna, tentei iniciar minha campanha contra o uso desenfreado do verbo “resgatar”. Não adiantou nada, estou sem moral, ninguém me fortaleceu… Mesmo aqui no Segundo Caderno, toda semana alguém resgata alguma coisa, solenemente, como até as manchetes dos artigos fazem questão de nos anunciar. Entrego minhas armas, já me acostumei. Assim como deixei de me arrepiar ao ouvir outro verbo da moda: “desenhar”. Hoje as pessoas ficam alegres, e se acham refinadas (talvez com razão), ao declarar que estão desenhando projetos ou até relações amorosas. Somos todos designers.

Culpa dos próprios designers. Não há profissão mais “estilosa”. Mesmo suas nítidas tendências expansionistas, ocupando cada vez mais postos no mercado de trabalho, são combustíveis para seu charme. Passamos a viver cercados por production designers, sound designers, landscape designers, lightning designers, fashion designers etc. Ninguém quer ser mais iluminador, produtor, jardineiro, costureiro… O mundo se sofisticou demais para caber na taxonomia profissional “desenhada” num passado pré-Apple.

Os designers mesmo, diante da invasão de sua praia, tiveram que criar novas embalagens para vender seus peixes coloridos com esmalte khaki da Chanel. Poucos deles se contentam com objetos ou arte gráfica. Agora definem o que fazem como o desenho de futuros ou, para ser ainda mais vago, de possibilidades. Diego Rodrigues, da IDEO (empresa de design que tem como lema “ajudamos organizações a inovar”), é um dos pioneiros do design de negócios. Outros, crentes que estão abafando, chegam a declarar que todos os problemas do mundo, inclusive os dos governos, podem ser resolvidos com melhores desenhos. E assim vamos, até o verbo desenhar sumir envergonhado do panorama. Já há designers que se intitulam, com orgulho, “contadores de história”.

Pode parecer que estou sendo apenas irônico, ou ridicularizando a nova onda desenhista. Não é minha intenção. Claro que alguns exageros são ridículos (como as cartas de amor, de Fernando Pessoa…). Porém, mesmo certos exagerados (como Cazuza) são pessoas que admiro muito, autores das idéias mais brilhantes emcirculação na atualidade. Como o Diego Rodriguez, citado acima, um dos cinco designer mais espertos do mundo, segundo a lista da revista Fortune. Os outros quatro: em primeiro lugar, é claro, Jonathan Ive (da Apple, o chefe de criação do iPod, iPhone e iPad); Shigeru Miyamoto (da Nintendo, que foi tema de uma coluna inteira por aqui); Indrani Medhi (pesquisadora da Microsoft, que tenta criar uma interface de computador para analfabetos); e Jan Chipchase, que ficou famoso quando trabalhava na Nokia viajando pelo mundo para observar como pessoas de diferentes culturas usam a tecnologia (principalmente celulares).

Passei a acompanhar, por RSS, o blog Future Perfect de Chipchase desde que li um artigo sobre seu trabalho em Uganda, revelando a forma engenhosa que o pessoal das periferias locais criou para enviar dinheiro para parentes através de créditos de celular (esse mesmo artigo falava de como os celulares ajudam os pescadores pobres do sul da Índia a, ainda no alto mar, descobrir que portos têm as melhores cotações para os peixes que caíram em suas redes, mas isso é material para outro texto). Em suas andanças, e muitas fotos, Chipchase conduz um trabalho que pode ser considerado fast-etnografia (a antropologia também está com tudo), mas muito bem feita, descobrindo futuros em locais perdidos da Terra, como uma beira de estrada afegã, ou uma barraca de um camelô de aldeia tibetana. Hoje, ele vai morar em Xangai. Morar em Xangai é tendência…

Também tento sempre seguir os passos de Anab Jain. Foi a primeira designer que vi se definir, enfaticamente, como contadora de histórias (depois descobri que o “story-telling” é tão tendência quanto Xangai, virando até tema de toda uma edição da revista Volume, lançada por uma das turmas do arquiteto – que acaba de “desenhar” o currículo de um novo curso de design em MoscouRem Koolhaas). A ênfase nas histórias, criada de preferência por muitas vozes, revela sua maior preocupação com o processo e não com o produto acabado. Para acompanhar um desses processos vale a pena ver os posts do “Power of 8”, desde o vídeo de Anab explicando seus objetivos e convocando outras sete pessoas, via web, para imaginar “futuros otimistas”. Foram selecionados de pedagogos a um químico. Gosto especialmente do trabalho do Charlie Tims, que incentiva muita gente a criar o que chama de “nubs”, espécie de vídeo-clipes para expor idéias.

Outro participante do Power of 8 era um especialista em permacultura, método que pretende “desenhar” plantações e até cidades inspirados nos processos naturais. O verbete da Wikipedia em inglês mostra como o design se infiltrou com sua doce e chic tirania em todos os lugares: “A permacultura é uma abordagem para desenhar assentamentos humanos e sistemas agrícolas que são modelados na relações encontradas nas ecologias naturais. A permacultura é o design do uso sustentável da terra.” Sustentável. Outro conceito que tem sido resgatado de forma descontrolada, como uma praga “natural”. Hoje em dia tudo acaba em sustentabilidade, sem explicações, inclusive este texto.