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arte do barulho bonito

01/09/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/08/2012

Preciso comemorar, mesmo atrasado, os 150 anos de nascimento de Claude Debussy. Durante este tempo todo, com influência a cada dia mais poderosa não só no campo da música erudita, ele viveu apenas – em carne e osso – 55 anos. Quando morreu, no dia 25 de março de 1918, chovia em Paris, e a cidade estava sendo bombardeada pelos alemães. Não copiei essa informação da Wikipedia, mas sim da abertura do disco “The seduction of Claude Debussy”, da “banda” eletrônica Art of Noise. Isso acontece frequentemente comigo (e com outras pessoas próximas – minha sobrinha adolescente foi apresentada a Debussy pelos vampiros de “Crepúsculo”): o pop banal e efêmero (talvez por isso mesmo) tem sido meu melhor professor para o que existe de importante e profundo na vida (inclusive o próprio pop).

“The seduction of Claude Debussy” é disco conceitual.  Tem até narrador, como no “Viagem ao centro da Terra”, de Rick Wakeman (meu primeiro grande show internacional, no Maracanãzinho). Suas declarações são bombásticas. Por exemplo: “hoje, não é considerado apenas o maior compositor que a França já teve, é o revolucionário que deu o rumo para a música do Século XX.” Não se trata de um exagero completo. Às vezes, diante da suavidade de muitas obras de Debussy, nos esquecemos de seu amor pela ruptura. Ele soube como ninguém embalar a radicalidade em beleza tão etérea (“os sons e os perfumes girando no ar da noite”, apropriado de verso de Baudelaire, é título do seu Prelúdio 4, Livro 1). Resultado: chegou a ter melodia sampleada em bossa nova, perfeitamente assobiável, de Tom Jobim (outro radical que não perdeu a ternura jamais).

Sonho de antropólogo doido: viajar no tempo e pousar na Exposição Universal de Paris, a que inaugurou a Torre Eiffel em 1989, só para ficar do lado de Debussy ouvindo um gamelão javanês. Claro que o iniciante modernismo ocidental já havia colocado minhocas esteticamente revolucionárias na sua cabeça, mas a ficha das novas possibilidades caiu mesmo no contato com aquela maneira totalmente outra de se fazer/pensar a música. Sobre a experiência, Debussy escreveu: “costumava haver – na verdade, apesar dos problemas que a civilização trouxe, ainda há – alguns povos maravilhosos que aprendem música tão facilmente quanto se aprende a respirar…”

Hoje podemos levantar o dedo acusatório: “orientalista ingênuo!” Sabemos que o gamelão, mesmo sem músicos profissionais, exige aprendizado sofisticado. Não digo que os fins de vanguarda justifiquem sempre os enganos dos meios, mas nesse caso o resultado da “incompreensão” intercultural foi benéfico (e depois acabou nos ajudando a entender melhor as musicalidades não-ocidentais). Debussy se sentiu liberado para dar início a outro capítulo da arte sonora do Ocidente, contra regras dominantes.  Passa a se guiar por um método de composição não mais organizado como narrativa linear, que desenvolve uma ideia musical atrás da outra, para atingir determinado objetivo (um climax aqui, outro a seguir, uma tensão que é aliviada mais adiante). Propõe caminho diferente: música que se espalha no ambiente, sem noção de progresso, ou distinção entre periferias e centros sonoros. Algo assim como a música eletrônica contemporânea.

Não foi surpresa então a homenagem da Art of Noise (cujo nome é citação do manifesto futurista de Russolo, e cujos discos foram lançados pela gravadora ZTT, abreviação de Zang Tumb Tuum, de obra também futurista de Marinetti, poeta italiano que visitou o Morro da Providência) para o mestre modernista francês-que-sabia-compor-javanês. “The seduction of Claude Debussy” tem um lado kitsch carregado (afinal, foi criado pelos mestres britânicos-que-sabem-falar-digital e deram ao mundo tantas explosões de mentiras sinceras que nos interessam demais, como “Video killed the radio star”, do The Buggles, “Relax”, do Frankie Goes To Hollywood, “Buffalo gals”, de Malcolm McLaren, “Slave to the rhythm”, de Grace Jones, ou “Owner of a lonely heart”, do Yes) que pode desencadear beleza pop embaraçosa – sempre para muito além de qualquer vestígio de autenticidade.

Gosto também do encarte, provavelmente escrito por Paul Morley (o jornalista, não-músico, componente da “banda”, junto com Trevor Horn, Anne Dudley e mais ou menos muitos outros), que inclui extratos de “um índice para o mundo maravilhoso do mundo da Art of Noise”. Na letra C temos, entre outras pessoas e coisas, Cage, Cher, Cixous, Coltrane, cyberspace. Na letra S, Schoenberg, Sondheim, Sontag, Supremes. Tenho certeza que esse é um mundo, pop e erudito, que Debussy consideraria também tão maravilhoso quanto o gamelão à sombra da Torre Eiffel.