texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22-07-2011
Richard “Nozinja” Methethwa, também conhecido por “Dog”, fez agradecimento público a Wills Glasspiegel, o responsável pelo lançamento de sua música fora da África do Sul: “ele me tirou da aldeia e me colocou no lugar ao qual eu pertenço.” Que lugar é esse? O palco do Rich Mix, novo centro cultural londrino – localizado no bairro vendido como o mais trendy da cidade – no qual Nozinja se apresentava pela primeira vez em solo britânico? Ou é lugar mais abstrato, aquele ocupado por celebridades mundiais, adoradas por platéias de todos os continentes? Óbvio: Nozinja estava em casa, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida além tocar sua música pelo mundo afora, ou como se tivesse se preparado a vida inteira para aquele momento, com sentimento claro de que sua aldeia era pequena e que inevitavelmente iria se tornar influente cidadão planetário.
A transformação foi repentina. Até 2010 – apesar de produzir cerca de 50 mil discos por ano para a sua gravadora – era um nome a mais na cena musical do povo shangaan (ou tsonga – falante de uma das 11 línguas oficiais da África do Sul), ouvida apenas em aldeias pobres da fronteira com Moçambique ou nas áreas shangaan de Soweto, favela de Joanesburgo onde vivem muitos grupos étnicos que abandonam o campo para caçar dinheiro na selva urbana. Como aconteceu em tantas outras periferias globais, essa gente animada também descobriu no YouTube um espelho. Ali colocaram vídeos de suas festas de rua, inicialmente somente para comunicação aldeias-favelas. Mas não se fabrica mais isolamentos culturais como antigamente. As imagens estão na rede e podem ser consumidas por outros povos. Foi através do YouTube que Wills Glasspiegel, no seu apartamento do Brooklyn nova-iorquino, entrou em contato com a produção musical de Nozinja, que por sua vez estava criando uma nova roupagem, século XXI, para o pop shangaan.
Ninguém sabe ao certo como essas microtendências viram “virais”. Talvez Wills Glasspiegel tenha uma boa rede de amigos-formadores-de-opinião-mundial, ou talvez exista por trás de tudo uma campanha de marketing poderosa, de nova empresa secreta. Os vídeos toscos de gente dançando a rapidíssima batida (no show, Nozinja não parava de anunciar os BPMs de cada música, até chegar aos impossíveis 185) totalmente eletrônica sul-africana passaram a ser recomendados nos sites de música “antenada” mais influentes, em meados de 2010. Logo depois foi lançado, com muitos elogios na imprensa on-line e off-line, a compilação “Shangaan Electro”, destaque em várias listas de “melhores do ano”. Gosto especialmente da crítica de Bruno Silva, publicada no ótimo site português “bodyspace.net”. Repare o adorável sotaque lusitano (como gostaria de escrever assim!), que encontra justificativa estonteante mesmo para a monotonia das bases sonoras de todas as faixas, excessivamente repetitivas, ou tolas: “É um facto que todas as malhas assentam arraiais numa instrumentação idêntica, mas dada a frescura de tudo isto, acaba por nem se revelar pernicioso. Trata-se de música de dança, no sentido mais verdadeiro da palavra, onde a repetição é via para a comunhão entre o corpo que não se cansa e uma mente ao abandono. Esbatem-se as diferenças, mas permanece um corpo de obra importantíssimo, cujo entusiasmo se revela sem parcimónia.”
Agora, neste verão de 2011 no Hemisfério Norte, Nozinja excursiona triunfal por vários festivais europeus, levando platéias ao delírio (como comentou Chico Dub aqui no Segundo Caderno, em sua cobertura sobre o Sonar, de Barcelona, plataforma de lançamento para muitas modas). Ao se apresentar no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbekian, em Lisboa, foi alvo de resenha ainda mais apoteótica do nosso querido “bodyspace.net”: “Pode-se até começar por dizer que terá sido o melhor Domingo de 2011. Ou por referenciar o ambiente familiar (em todos os sentidos) que se fazia sentir no anfiteatro da Gulbenkian. Ou mesmo que, por momentos, este país se tornou um sítio um pouco melhor para se estar. Mais do que tudo isso, foi prova cabal de que a música tem mesmo a capacidade de inflamar corações.” (Gosto de pensar na vingança do colonizado, colonizando mentalmente o ex-colonizador: a favelização do povo shangaan, povo comandante do Império de Gaza, foi obra do colonialismo português que derrotou o Imperador Gugunhana, cujo nome era também Reinaldo Frederico e morreu exilado nos Açores.)
No Rich Mix londrino, eu percebia o mesmo entusiamo na platéia. Não era platéia afropolita, como a da festa do museu Victoria & Albert comentada aqui na coluna da semana passada. Era maioria branca, mas não menos chique e dava para perceber que não podia haver público mais caçador de tendências na cidade. Todos – o show lotou dias antes – pareciam contentes por se imaginarem os primeiros a ter acesso não virtual e exclusivo ao fino da próxima bossa (se Lady Gaga for mesmo esperta fará um remix shangaan electro de “Judas”, aquela faixa harley-davison de seu disco mais recente). Mas tudo isso não deixa de ser bem estranho. A transposição do vídeo de rua para o palco europeu funciona de maneira divertida, mas capenga. Tudo bem: vivemos época de microtextos, microtendências, microcenas – e também microentusiasmos. Nada é falso, e é bom enquanto dura. Tudo é pop-up, mesmo a alegria. Sejamos bem-vindos ao lugar ao qual Nozinja pertence.