vivendo bem e aprendendo

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/03/2015

“Sumak Kawsay” – expressão em quíchua, língua falada por cerca de 10 milhões de pessoas principalmente no Peru, Bolívia e Equador – é conceito de difícil tradução. Significa algo como vida boa, ou vida plena, em comunidade e em harmonia com a natureza. Hoje é base de movimento social/político que se espalha pela América do Sul: o “Buen Vivir”. Rapidamente deixou de ser bandeira levantada por pequenos grupos e conseguiu local de destaque nas novas constituições do Equador (promulgada em 2008) e da Bolívia (2009). Revela aliança entre tradições indígenas e outras modernidades.

Na Constituição da Bolívia, aparece em outras línguas no Artigo 8, Capítulo Segundo, que aborda “Princípios, valores e fins do Estado”: “O Estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso nem sejas ladrão), suma qamaña (viver bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem mal) y qhapaj ñan (caminho ou vida nobre).” (Uma lembrança: quando teremos nova edição de “Terra sem mal”, livro sublime de Helène Clastres?)

No Equador – sigo comentário de Eduardo Gudynas, apresentado abaixo – o “Buen Vivir” tem interpretação pragmática, transformado em conjunto de direitos. O capítulo “Direitos do Bem Viver” é dividido nos seguintes tópicos: água e alimentação, ambiente são, comunicação e informação, cultura e ciência, educação, habitat e moradia, saúde, trabalho e seguridade social. Citei todas para mostrar como o “Buen Vivir” foi empossado no fundamento de tudo. O Equador criou o “Plano Nacional Buen Vivir”. Vale transcrever trecho especialmente expressivo: “O ‘Buen Vivir’ supõe ter tempo livre para a contemplação e a emancipação, e que as liberdades, oportunidades, capacidades e potencialidades reais dos indivíduos se ampliem e floresçam de modo que permitam lograr simultaneamente aquilo que a sociedade, os territórios, as diversas identidades coletivas e cada um – visto como um ser humano universal e particular ao mesmo tempo – valoriza como objetivo de vida desejável (tanto material como subjetivamente e sem produzir nenhum tipo de dominação de um sobre outro)”.

Repare bem: isso não é um manifesto utópico, é um plano de governo realmente existente, que gera tarefas para todos os ministérios. Por exemplo: no Ministério da Educação há o “Projeto Escolas do ‘Buen Vivir'”, sugerindo até alimentação natural e de produção local para os “bares escolares”.

Claro que intenções tão bonitas geram desconfianças. Ou mesmo críticas contundentes, como aquelas que apontam contradição entre discursos e ações governamentais. No Equador, a pregação sustentável convive com protestos contra os planos de “megamineração” de cobre também do governo em acordo com empresas chinesas.

Eduardo Gudynas – um dos mais influentes pensadores do “Buen Vivir” e pesquisador do Centro Latino-americano de Ecologia Social no Uruguai – faz diagnóstico dessa situação contraditória comum a tantos governos de esquerda da região: o apego ao “progressismo”, que confunde crescimento com ideal de vida, investindo em extração de commodities ou aumento do consumo como salvação nacional, colocando considerações ambientais em segundo plano. Viver bem seria produzir riqueza para produzir mais riqueza e assim por diante, até o Fim. Gudynas, que admite semelhanças entre o “Buen Vivir” e o movimento do “decrescimento” (que este ano também fez sua estreia nesta coluna), diz que hoje o “desenvolvimento” atua como uma “categoria zumbi” na política latino-americana. Todo mundo sabe que é um morto cada vez mais vivo, do qual nenhum país ou política consegue se livrar, apesar de todos acreditarem em palavras que decretam seu esgotamento total.

E a sedução zumbi ostentação do consumismo desenvolvimentista continua vigorosa, mesmo na cultura. Acabo de descobrir (obrigado pela dica, Jô Hallack) a arquitetura cholet, criada pela nova classe média boliviana, que inspira os cenários e figurinos do Esquenta! este mês. Comerciantes ambulantes indígenas ganharam grana e agora colorem suas casas e ruas com uma mistura de tradição e futuro, o outro lado do “Buen Viver”. Volto à tragédia de “A novidade”: sereia estendida na praia, metade busto de deusa maia, alguns a desejar seus beijos divinos, outros fritando seu rabo para ceia. Tudo complexo demais.

***

Confissão e agradecimento: há um mês nunca tinha ouvido falar do “Buen Vivir”. Quem me apresentou ao movimento foi Eduardo González, um dos fundadores do Partido Pirata Argentino, que publica vários textos desta coluna em espanhol. Vivendo e aprendendo. Só vivo bem quando aprendo coisas novas.

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