Archive for the ‘Itália’ Category

Rafael Roma Goethe

01/07/2020

Li que a grande exposição dos 500 anos da morte de Rafael foi reaberta em Roma. Fiz 60 anos na quarentena. Agora posso entrar na fila de idosos. Antes da pandemia, planejava me dar de presente de aniversário uma viagem até a Capela Sistina, onde a tapeçaria de Rafael poderia ser vista por poucos dias (já tive oportunidade de observar os “cartoons” no V&A, incluindo nesta situação afropolitan). Não conheço a Itália. Era um desejo que tinha poucas chances de ser realizado, mas nunca pensei que seria impossibilitado por causa de um vírus e pela proibição – talvez eterna? – da entrada de brasileiros na Europa.

Imaginei essa viagem incentivado por Goethe. Estava lendo Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, maravilha escrita por Johann Peter Eckermann. Ali, em muitos momentos, há antipatia explícita contra católicos. Exemplo radical (Terça-feira, 7 de abril de 1829 – as Conversações são escritas como um diário): “E não se pode confiar nos católicos. Sabemos a má situação em que se encontraram até hoje os 2 milhões de protestantes da Irlanda diante da prepotência dos 5 milhões de católicos e como, por exemplo, pobres arrendatários protestantes que tinham vizinhos católicos foram oprimidos, chicaneados e atormentados. Os católicos não podem se suportar mutuamente, mas sempre se unem quando se trata de se opor a um protestante. São como uma matilha de cães que se mordem uns aos outros, mas, assim que aparece um cervo, logo se unem para atacá-lo em massa.” (Mas há conversas demonstrando que a “polarização” acontecia também entre protestantes, como o caso dos “sectários do norte da Alemanha” [Quarta-feira, 20 de junho de 1827]: fala Eckermann: “esse segregacionismo pietista desunira e fragmentara famílias inteiras. Eu pude contar uma história semelhante, de como quase perdi um excelente amigo porque ele não conseguira converter-me a suas convicções.” Nada de novo sob o sol… Em qualquer lugar ou crença…)

Apesar desse sentimento anti-católico, uma viagem italiana é sempre aconselhada como rito fundamental, quase obrigatório, na formação de qualquer ser humano. Talvez não para viver entre pessoas católicas, mas para ter contato com arte católica, que de alguma maneira se elevaria para muito além de sua origem religiosa, resultando na beleza mais espantosa (Quarta-feira, 18 de fevereiro de 1829: “- O ponto mais alto a que uma pessoa pode chegar – disse Goethe nessa ocasião – é o espanto”) já produzida no mundo.

A elite que frequenta a casa de Goethe – todas as celebridades européias, incluindo Napoleão, queriam passar alguns minutos em sua companhia – ostenta intimidade com Roma. Karl Wilhelm Göttling, professor de filologia em Iena, recomenda para Eckermann (Quarta-feira, 8 de outubro de 1828): “O senhor tem de ir para Roma, se quiser se tornar alguma coisa! Aquilo é uma cidade! Aquilo é uma vida! Aquilo é um mundo! Aqui na Alemanha não podemos nos livrar de nada do que é pequeno em nossa natureza. Mas, assim que entramos em Roma, passamos por uma transformação e nos sentimos grandes como tudo aquilo que nos rodeia.” Goethe comenta (Quinta-feira, 9 de outubro de 1828): “Sim, posso até dizer que somente em Roma percebi o que é de fato um ser humano. Jamais tornei a experimentar semelhante sensação de elevação, de felicidade. Em comparação com meu estado de espírito em Roma, nunca mais tornei a me sentir de fato verdadeiramente alegre.”

Adoro este relato (Terça-feira, 14 de abril de 1829) do conselheiro áulico Meyer remorando sua juvenil boêmia romana, vivida intensamente com um bando de amigos artistas alemães. Escrevi este post só para compartilhar esta sublime e extremamente pitoresca narrativa:

“- A disputa sobre Rafael e Michelangelo – disse Meyer – estava na ordem do dia e era retomada toda vez que os artistas se reuniam em número suficiente para haver representantes dos dois partidos. Ela sempre começava em alguma osteria onde se pudesse beber vinho muito bom e barato; argumentava-se a partir de uma pintura, de um detalhe isolado dela e, quando o partido contrário fazia objeções e não queria admitir isso ou aquilo, surgia a necessidade de um exame imediato dos quadros. Saíamos discutindo da osteria e nos dirigíamos a passos ligeiros para a Capela Sistina, cuja chave estava em poder de um sapateiro que sempre a abria por alguns trocados. Ali, diante das pinturas, procedíamos a demonstrações e, quando já havíamos discutido bastante, voltávamos à osteria a fim de nos reconciliarmos com uma garrafa de vinho e esquecermos todas as controvérsias. Isso acontecia todos os dias, e o sapateiro da Capela Sistina ganhou muitas gorjetas.”

Deveria terminar por aqui. Nenhum comentário é digno de acompanhar essa – que Eckermann classifica como – “divertida anedota”. Mas não resisto. Primeiro algo bem paralelo: onde estava Leonardo? Não era considerado ainda um gênio? Mas agora indo direto ao que interessa: sapateiro!!!!! Com a chave da Capela Sistina?!!!!! Simples assim? E a Capela Sistina ali, disponível todos os dias, sem cerimônias ou o aparato de segurança atual, até para jovens artistas alemães bêbados? Como eu queria ter sido desta turma. Agora, só de pensar nos protocolos de visitação, com ou sem pandemia, fico com preguiça e opto por um tour virtual 3D.

multiplex

14/06/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/06/2014

Em 1978, foi realizado o primeiro festival internacional de jazz em São Paulo. Acompanhei todas as oito noites de shows, de Piazzola a McLaughlin, pela TV. Sim, a TV transmitiu tudo, para todo o país. Inclusive as várias horas, já na madrugada, da apresentação apoteótica de Hermeto Pascoal. Ficou bem marcado no recanto mais alegre da minha memória o canto de Hermeto chamando convidado especial para a festa de improvisação radical: “Stan Getz / vem cá / tocar / um forró”. Reencontrei esta semana a gravação desse encontro na internet. OK, boa redescoberta. Mas eu não deveria estar escrevendo uma coluna sobre a Copa iniciada ontem?

Meu assunto é Copa. Recomeço: não sonhei, o festival foi realmente transmitido pela TV. Hoje, mesmo a TV Educativa (se existisse ainda com esse nome) não faria aquela transmissão, ao vivo, integral. Porém, naquela época, eram tão raros eventos de grande porte no Brasil, que todos ganhavam cobertura eufórica (temos festival de jazz!) da mídia ainda bem centralizada (não havia nem computador pessoal). Logo depois, o Rock in Rio também “parou” o país. Nina Hagen ganhou fotos nas primeiras páginas dos jornais. Atualmente há até saturação de festivais de música. Por mais bem promovidos, é cada vez mais difícil que ultrapassem os limites de seu nicho. O mercado de entretenimento e eventos cresceu loucamente (se multiplexificou – como compôs Caetano e canta Gal, “neguinho também só quer saber de filme em shopping”) no Brasil. O crescimento inclui, talvez necessariamente, fragmentação para públicos de interesses diversos. Todos levando desvantagens e vantagens em tudo.

Morei por um ano em Chicago, no início dos anos 1990. Já havia mais de uma centena de canais na TV no cabo. Não me lembro de ter visto a cidade ou a mídia ser tomada por um único assunto, a não ser a Guerra do Golfo (com aquelas fitas amarelas em casas e prédios). Talvez tenha percebido um número exagerado de camisetas de feira hippie no dia que o Grateful Dead tocou no estádio Soldier Field. Quando o Chicago Bulls ganhou – depois de vários anos sem títulos – o campeonato principal do basquete dos EUA, tive que andar muito para encontrar comemoração de rua. Nenhum acontecimento parecia ter o poder de contagiar todos os grupos sociais no mundo “desenvolvido”.

Chegando então na Copa: a evidência de que não vemos todas as ruas pintadas de verde e amarelo é, para além dos protestos contra os gastos com o evento, sinal também de “desenvolvimento”, que “chegamos lá” com mercado diversificado, que nunca mais seremos “possuídos” por uma “primitiva” paixão coletiva? O Brasil deixa de ser aldeia isolada, e vira terra complexa não mais controlada por pauta comum de sentimentos e atividades? O multiculturalismo venceu? Nossa identidade vai ser cada vez mais múltipla, com mundos (mesmo enormes) separados?

Recomendo a leitura de “Formação da culinária brasileira”, livro de Carlos Alberto Dória que certamente é um dos lançamentos mais importantes deste ano (antigamente seria mais fácil dizer: “ano de Copa”). Posso, irresponsavelmente, tentar resumir seu argumento em poucas palavras: o paladar no Brasil vive momento de grande transformação, deixando de lado o amálgama de pratos/receitas que encantavam, por motivos diferentes, Gilberto Freyre e Camara Cascudo, e passando a realizar experiências baseadas em “ingredientes” (incluindo as Pancs – “plantas alimentícias não convencionais”), em atitude pós-‘terroirs’ (DOCs, AOCs etc.), e talvez já pós-“locavorismo” (o restaurante Noma não é mais novidade). Um dos sintomas: o arroz e feijão de todo PF cede lugar à profusão de cores de gastronomia por quilo, cada vez mais eclética (muitos cartazes propagandeiam orgulho de oferecer chia ou quinoa) e popular. Dória mostra como essas tendências todas são produzidas num caldeirão de discursos políticos, econômicos, médicos, ambientalistas, nutricionistas, resultando em identidades (com pé na cozinha) rapidamente mutantes.

Não parece mais haver espaço para o processo descrito no livro “Pasta e pizza”, de Franco La Cecla (lançado pela Prickly Paradigm Press, pequena editora de Chicago já elogiada por aqui), de invenção da culinária nacional italiana. Ali aprendemos que foi só no final do século XIX, início do século XX, que o macarrão se difundiu pela Itália, também com a ajuda dos imigrantes que já viviam no continente americano (e não foi Marco Polo quem trouxe a “pasta” da China). O mundo era bem mais simples e pitoresco naquela época? Questão de ponto de vista. Hoje a culinária italiana voltou a ser quebra-cabeça de gostos regionais, em mercado globalizado cada vez mais “sofisticado”.

Então estamos aqui, com nossos paladares voláteis e micropaixões contraditórias. Precisamos ser seletivos, cuidadosos: boa Copa para quem gosta de Copa.

diretor artístico

18/01/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/01/2014

O programa Navegador – que apresento na Globo News com Alê Youssef, José Marcelo Zacchi e Ronaldo Lemos – é a celebração de atividade que parece condenada à extinção com o predomínio de redes sociais e apps fechadas: gostamos de passear livremente pela velha internet, numa errância de um assunto/site para outro, sem saber onde vamos parar. Incentivamos que outras pessoas façam o mesmo. Por isso deixamos disponíveis todos os links comentados, para serem pontos de partidas de outras viagens. A quantidade frenética de tópicos diferentes é intencional. Não queremos esgotar cada tema, mas sim dar início a muitas e diversas conversas paralelas, que podem acontecer em qualquer lugar, inclusive nesta coluna. Por exemplo: quero retomar aqui o que falei sobre Nicola Formichetti, mais conhecido como o stylist da Lady Gaga, na edição do Navegador que pode ser vista neste link.

O pano de fundo para minha decisão de trazer seu nome à baila (prefiro usar “à baila” do que “à balha”, pois lembra mais uma dança do pensamento) era o debate, que fez algum sucesso em 2013, sobre o uso da Lei Rouanet para a captação de recursos para desfiles de moda. Nada contra a vontade geral de tornar mais claros os limites para o uso de dinheiro incentivado. Porém, muitos comentários raivosos entraram em terreno perigoso ao colocar a dúvida: moda é cultura? Ou ainda: moda é cultura relevante?

Achava que isso era polêmica de passado remoto. Não consigo pensar o melhor ou mais radical da cultura do Século XX sem incluir na lista de artistas megaimportantes nomes como Vivienne Westwood, Yohji Yamamoto ou Rei Kawakubo (da Comme des Garçons). Estou sendo até conservador, indo no correto, citando os trabalhos aceitos em meios intelectuais ou da Grande Arte. Yamamoto já foi centro de documentário de Win Wenders, honra só obtida por Pina Bausch e Nicholas Ray. Kawakubo e Westwood têm verbetes na The Heilbrunn Timeline of Art History do museu Metropolitan de Nova York. Outras pessoas são mais liberais. Veja o que o pintor Julian Schnabel escreveu sobre Azzedine Alaïa na última Art Issue da revista Interview: “é um escultor que desenha com tesouras.”

Nichola Formichetti é um passo além. Ele não é nem um estilista, mas um “stylist”. Não sei se há termo em português para diferenciar os dois trabalhos. O estilista cria as roupas, inventa os conceitos para as coleções. O “stylist” até bem pouco tempo parecia ocupar uma posição secundária, combinando peças e acessórios para sessões de fotografias ou desfiles. Não mais, talvez sinal dos tempos em que curadores (os que juntam as criações dos outros) são tão criativos quanto os criadores “de primeira instância” (podemos discutir, em outro momento, se há mesmo essa primeira instância já que a arte contemporânea tem sido, há tempos, um jogo – severo ou lúdico, tanto faz – de citações).

Filho de pai piloto de avião italiano e mãe aeromoça japonesa, Formichetti foi criado na ponte aérea Roma-Tóquio. Depois estudou arquitetura em Londres, mas abriu lojas de roupas “alternativas” e logo começou a trabalhar como stylist nos editoriais de moda da revista Dazed and Confused, onde teve carreira meteórica chegando a ser diretor criativo. Seu encontro com Lady Gaga, que tem faro aguçado para se cercar de pessoas talentosas (assim como Grace Jones com Chris Blackwell e Jean-Paul Goude nos anos 1980), deu visibilidade para suas ideias fora do mundo das revistas de moda britânicas. Tudo com estética do choque em mundo onde nada mais choca. Vide aquele vestido de carne usado por Gaga em alguma dessas milhares de cerimônias de entrega de prêmios de música.

Hoje Formichetti é uma das pessoas mais poderosas também no mundo das artes. Ele ocupa o cargo de diretor criativo (como observou José Marcelo Zacchi: que denominação espetacular essa de “diretor criativo”) da Diesel, marca italiana de jeans. Lá criou a campanha Reboot, que tem sua base na rede social Tumblr e trata a internet como a nova rua, de onde são pinçadas as novas tendências. Antes os adolescentes se mostravam nas calçadas da King’s Road. Agora tiram fotos no espelho do quarto. Formichetti transformou a campanha da Diesel em exposição virtual, apresentando novos talentos.

O virtual vai para o real e vice-versa. Uma das descobertas da Reboot, o fotógrafo Michael Mayren (que ficou famoso com retratos de adolescentes ensanguentados em lutas de box), fez exposição na vitrine da Diesel de Convent Garden, tudo bancado também pela Serpentine Gallery do curador não menos poderoso Hans-Ulrich Obrist. Moda? Arte? Promiscuidade? Relativismo? Coloquem a culpa na modernidade, essa menina sem noção e sem aura.