texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/02/2014
No último dia de novembro do ano passado, Ronaldo Bressane publicou, no Guia Folha, microresenha de “Forming”, novela gráfica de Jesse Moynihan. Descrição: “uma épica e absurda batalha entre deuses alienígenas, titãs gregos, androides interplanetários e até mesmo humanos.” Nem falou em metafísica dogon, mas não precisava. Suas palavras foram suficientes para ter início minha batalha em busca desse estranho objeto. Passei em várias queridas livrarias e não havia nada sobre o lançamento nos registros. Fui parar no site de sua editora carioca (mais precisamente: de Santo Cristo, do teto da Bhering), A Bolha. Não tenho nada a ver com a doença do “eu vi primeiro”, identificada por outro Ronaldo, o Lemos. Então posso confessar: não sabia de sua existência. Fiquei horas conferindo o catálogo. Só nomes que desconhecia. Isto é o que mais gosto na vida: o súbito descortinar de diverso e vasto novo universo.
Escrevi para o contato da editora, perguntando onde poderia comprar “Forming” e os outros livros. Rapidinho recebi resposta. Reconheci a assinatura: era Rachel Gontijo Araujo, a editora pessoa física que agora – depois que Stephanie Sauer, artista plástica e a outra metade fundadora d’A Bolha, voltou para os EUA – virou toda a editora, cuidando – sem outros funcionários – de cada etapa de produção/comercialização, da primeira conversa com autores à correspondência com a clientela. Comprovei imediatamente tudo que havia lido em suas entrevistas disponíveis no site. Não era marketing indie, era a realidade cotidiana da empresa.
Rachel me falou da dificuldade das relações entre pequenas editoras e grandes livrarias. Por isso eu não encontrei “Forming” em lugar nenhum (honrosa exceção: todos os livros d’A Bolha podem ser encontrados, descobri depois, na Blooks, livraria que sempre deu força para quadrinhos independentes). Não repito sua explicação para transformar as lojas em vilãs, mas para sugerir diálogo que fortaleça a “ecologia livreira” nacional, que vai precisar cada vez mais de independentes para satisfazer nichos vorazes (o futuro do mercado?) de leitores (é decepcionante entrar em ambiente gigantesco, como o da Cultura da Cinelândia, e não encontrar muito além do que espaços bem menores já vendem). Rachel, sem ressentimento algum, faz o diagnóstico citando condições comuns das “grandes”: pedidos de descontos de 50% no preço de capa; preferência por consignação e não por compra de exemplares; pagamento de fretes pelas “pequenas”. Em resumo: “para uma editora independente, esse relacionamento não faz muito sentido.”
Pena. Grande parte dos compradores de livros acaba não tendo acesso ao catálogo incrível já lançado por essa valente empresa do Santo Cristo. Isto é o mais importante para ser destacado: Rachel (antes em conjunto com Stephanie) faz o trabalho de uma verdadeira casa das letras: criação de linha editorial com grande personalidade. Não segue o jogo dos poderosos agentes literários internacionais nas grandes feiras de livro, não está preocupada com relançar por aqui o que ganha os principais prêmios lá fora. Nada contra os best-sellers, nada contra os prêmios, nada contra as feiras. Mas alguém precisa publicar apenas o que ama ler, olhando para outros lados, fazendo outras descobertas, para formar novos públicos com novos olhares, capazes de produzir outras novidades.
Só por causa d’A Bolha fui conhecer Jesse Moynihan (e a apresentação se deu em grande estilo: capa dura, impressão belga – o independente não significa falta de cuidado ou de luxo, mas mesmo assim consegue ser mais barato que outras edições do mesmo nível). Só depois fui parar no seu blog, onde lançou cada página de “Forming” em diferentes posts, com acompanhamento do público nos comentários. Isso é prova que publicar antes e de graça na internet não é barreira para vender papel em seguida. Por exemplo: eu já li “Forming 2” no blog, mas vou comprar sua edição em livro assim que A Bolha lançar (o livro inglês deve sair agora em março). Recomendo também a parceria de Moynihan com Dash Shaw (o autor de “Umbigo sem fundo”, lançado pela Quadrinhos na Cia.) na revista The Believer. Ou “Adventure time”, desenho animado escrito por Moynihan, exibido no Cartoon Network.
Isso aconteceu com os outros livros d’A Bolha. Depois da leitura ia procurar mais na internet, e tudo virava outra grande aventura. Como eu era ignorante sem conhecer CF, autor do excelente Powr Mastrs (A Bolha já lançou dois de seus volumes), talvez o “Incal” de nossos dias (se não concorresse com “Forming”…), certamente mais misticamente delirante que Rudy Rucker ou Philip K. Dick. E assim vai, até chegar na tradução/publicação de Hilda Hilst em inglês, parceria A Bolha/Nightboat. Conexões diretas estourando várias bolhas editoriais do mundo.
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Eduardo Coutinho: precisamos ver logo seu próximo filme, “Palavra”. E fazer mais e melhores documentários, para honrar seu legado. Para recomeçar é obrigatória a leitura deste texto de Carlos Nader.