versão ampliada do texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 26/04/2013
Você só tem menos de 120 horas para ver o filme-piloto do “projeto CLAUN” na internet. Dia 30 sai do ar, e será preciso esperar por alguma exibição provavelmente em festival ou sala de cinema “de arte”. Então aproveite: os três capítulos de “Os dias aventurosos de Ayana” estão em cartaz, com qualidade HD “cortesia” do Vimeo, na página www.claun.com.br. Tudo ali me parece boa novidade, embalada no estilo pós-udigrudi-com-tempero-thai-ou-filipino já característico do diretor Felipe Bragança. (Estou zoando! Como diz a letra de um funk que aparece na trilha sonora do filme: “a vida foi feita para cantar e zoar”.) A estratégia de lançamento, primeiro na rede, é digna de ousadia mais fundamental: os clowns, ou clóvis, ou bate-bolas – figuras fascinantes do carnaval carioca – recebem finalmente tratamento de super-heróis. Meteorango-kids sofrem mutações em x-men justiceiros suburbanos. Como ninguém pensou nisso antes?
Para ser exato: o filme teve sua estreia em janeiro no Festival de Rotterdam. Depois houve sessão na Arena Jovelina Pérola Negra, na Pavuna. Sei de tudo isso pois acompanho seu desenvolvimento desde 2011 quando recebi email do Felipe (já posso tratá-lo assim, com intimidade, mesmo que nosso contato até agora tenha sido apenas virtual) cujo assunto era “conversa filme mascarados”. Porém, nunca se tratou somente da produção de um filme. Como está escrito na sua página da internet: “O projeto CLAUN pretende desenvolver a web-série, uma graphic novel e uma reunião de documentos sobre a cultura e a mitologia dos mascarados. Sete turmas reais de bate-bolas colaboraram na criação dos primeiros três capítulos-piloto aqui reunidos.”
Então o termo piloto é apropriado: início de uma longa, misteriosa e militante aventura. Na troca de emails, Felipe me contou que tem dez roteiros já escritos para a web-série e que em breve, com bolsa que ganhou para uma temporada em Berlim, desenvolverá a história em quadrinhos mesmo ainda sem editora. Essa novelização-gráfica do CLAUN é algo que aguardo com ansiedade. Sempre me interessou a maneira voraz com que os bate-bolas se apropriam do imaginário pop. Recentemente vi turma enorme que bordou personagens de jogos eletrônicos em seus mantos. Vou gostar de ver essa visualidade carioca transposta para o mundo HQ (vasto mundo: Felipe desde o início fala da vontade de absorver a linguagem japonesa dos animês e mangás) e depois sua volta para as ruas.
CLAUN já lançou outros subprodutos. Felipe, um pouco antes de me mandar aquele primeiro email sobre os mascarados, publicou no caderno Prosa, deste jornal, artigo intitulado “Meu último texto de cinema”. Ainda bem que não parou de escrever, pois é um dos observadores mais argutos (mesmo quando não concordo com ele) da cena cultural brasileira contemporânea. Recomendo enfaticamente a leitura, entre um capítulo e outro de “Os dias aventurosos de Ayana”, de “Eu, bate-bola”, texto que Felipe publicou no site Overmundo e que é um dos melhores ensaios culturais deste ano.
Felipe entrou de corpo e alma na realidade dos mascarados. O cineasta virou nativo e passou o carnaval 2013 batendo bolas nas ruas da cidade, enfrentando mesmo a violência policial que tenta tirar os bandos de clóvis das ruas. Seu artigo do Overmundo é uma reflexão sobre essa sua experiência particular/coletiva. Tudo fica com pingos em todos os is: “O glitter usado para fazer brilhar os tecidos […] é só a última camada de uma cultura toda feita de camadas, de uma cultura de confusão, sobreposições e colagens. Não há pureza em ser um bate-bola”.
Esse elogio da impureza envereda por territórios mais perigosos ao longo do texto e do filme-piloto, que defendem lado do Rio que nenhum choque de ordem vai conseguir domesticar. Há um trecho especialmente eloquente a esse respeito: “nós, os bate-bolas e clóvis representamos também o engano, o erro, o ruído, os Exus, os sacis, Loki, a batalha simbólica do homem com o imponderável, o inusitado e o que nos tira do repouso e do conforto e do planejado. As bombinhas estouradas nas ruas, a batida forte das bolas de plástico no chão quando passam correndo no meio da multidão, o mistério das máscaras e das sombrinhas que caminham em linhas projetadas como uma tropa de deuses entre foliões perdidos na festa – tudo ali fala também dos espíritos, do invisível e do imponderável – nos lembram dessa silenciosa certeza de estarmos ali para celebrar a vida. As potências da vida.”
Essa batalha carioca, Felipe vem travando há tempos. Seu texto “Monstruosidade maravilhosa”, publicado também aqui no jornal em 2011, é a defesa dos “monstros” da cidade (e para ele filmes também são monstros). Pensamento sintetizado em comentário sobre o curta que fez na Aldeia Maracanã, lançado no ano passado: “O que me interessa ali é a cidade mágica daqueles que se sustentam pelas brechas da cidade real. Nela vivem heróis corajosos e melancólicos que constroem identidades próprias e novas formas de organização social e poética para se manterem persistindo, sem se conformar com os planos meramente lógicos da eficiência urbana.”
Mandei para Felipe cópia de textos que escrevi depois de viajar pelo Brasil documentando brincadeiras chamadas de folclóricas. Nelas sempre encontramos palhaços, mateus, arlequins, caretas que são elementos ambíguos, ninguém sabe se do Bem ou do Mal. Mas sem essa incerteza não há festa. Como me disse um palhaço de guerreiro alagoano: “A barreira da frente é a gente. Porque se não tiver a nação de palhaço, a brincadeira fica parada. Se não for com as nossas figuras, ninguém fica animado. Nós somos a alegria. Por isso a brincadeira tem toda essa repartição de animação.”