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a onda do rap

16/04/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08/04/2011

El Général não deve ser confundido com El General. Repare os acentos do primeiro nome: são detalhes que fazem toda a diferença e nos transportam do Panamá para a Tunísia, no ritmo de uma batida perfeita e globalizada. El General, sem acento, pronuncia-se com sonoridade castelhana: o “g” tem quase som de “rr” em português ou de “h” em árabe, emitido com a garganta. El Général é pronunciado seguindo as regras fonéticas francesas, com sotaque do norte da África. Apesar das diferenças, os dois são nomes artísticos. El General nasceu como Edgardo Franco, e é considerado um dos pais do “reggae en español”. El Général foi registrado como Hamada Ben Amor, e ficou conhecido agora no início de 2011 como criador do rap que virou hino das manifestações de rua que estão mudando vários regimes políticos do mundo árabe.

El General, sem acentos, causou grande impacto quando surgiu, no início dos anos 90, com sua música galhofeira, que parecia ter como objetivo único sacudir os popozões em hits como “Ta pum pum” ou “Rica y apretadita”. Segurando as pontas da diversão libidinal, sua sonoridade de mestre mixava o mais novo dancehall jamaicano com rap e vários ritmos/timbres da América Central, da metaleira das “bandas” mexicanas (com não sair pulando e com o cérebro mais inteligente ao ouvir os primeiros acordes de “Las chicas” em sua “version banda reggae”?). Sua ousadia serviu de exemplo para muitos rapazes (e moças) latino-americanos fazerem suas antropofagias particulares, gerando – em Porto Rico – a invenção do reggaeton, um dos estilos mais emblemáticos do século XXI.

El Général – 21 anos – tem história bem mais recente e ninguém pode adivinhar as consequências própriamente artísticas que sua música vai ter, para além dos efeitos políticos já evidentes. Até o final do ano passado, como explicou Andy Morgan (que foi empresário da banda tuareg Tinariwen e hoje tem importante blog dedicado à “world music”), ele era figura escondida do terceiro escalão do rap tunisiano, por sua vez obscurecido internacionalmente pela maior criatividade do rap marroquino ou daquele feito pelos imigrantes árabes na França. O fato de também não ser contratado por nenhuma gravadora não teve a menor relevância para sua meteórica ascensão ao protagonismo político/pop planetário. Tudo o que El Général precisou foi de dois raps e uma conexão com a internet.

Em 7 de novembro de 2010 ele publicou o primeiro rap – “Presidente, seu país” – no YouTube, causando furor no Facebook e indo parar nas telas da al-Jazeera. Resultado: o governo tunisiano fechou sua página no MySpace e até emudeceu seu telefone. Tarde demais, pois a música já tinha sido copiada milhares de vezes e era cantada nas ruas. Em dezembro, El Général encontrou uma maneira de subir para a internet outro rap, “Tunísia nosso país”, e no dia 6 de janeiro deste ano foi preso, passou três dias sendo interrogado pela polícia e a reação popular foi tão forte que a polícia teve que soltá-lo. Nascia uma estrela, um herói nacional que logo virou internacional: seus raps foram cantados pelas massas da praça Tahrir, no Cairo, e hoje podem ser ouvidos em manifestações na Síria ou na Líbia. Poucas vezes outras músicas – a Marselhesa? a Internacional? – tiveram tanta importância política.

Enquanto escrevo sobre El Géneral, vejo o rosto de Kanye West, em fotografia de Karl Lagerfeld (conhecido como o tsar da moda, o chefão da Chanel), na capa da revista VMAN, irmã masculina da Visionaire, publicação que permanece central para o imaginário fashionista contemporâneo. Kanye é provavelmente o artista mais influente da música atual, influência que não fica restrita apenas ao ambiente musical. É também milionário, como muito outros rappers norte-americanos (o ex-aposentado Jay-Z, o recém-ex-presidiário Lil’ Wayne, ou mesmo a novata extraordinária Nicki Minaj), que hoje devem produzir a metade do PIB pop dos EUA.

Quem diria: o rap surgiu – sob influência caribenha – no Bronx, periferia miserável de Nova York, com todos os problemas sociais imagináveis. Era uma música barulhenta (“faz barulho aí!”), bastarda (até hoje muita gente ainda questiona se é música), feita com colagens de músicas dos outros e até com o arranhar da agulha no vinil dos outros. Aquilo que era considerado algo bizarro, condenado como modismo passageiro, já tem mais de 30 anos e continua a nos surpreender, produzindo ao mesmo tempo grana e rebelião, mega-status-quo e voz para todos os tipos de oprimidos, em qualquer lugar e língua. O rap não foi uma invenção da indústria fonográfica norte-americana, veio de fora e subjugou a indústria que teve que passar a trabalhar para propagar ainda mais seu “vírus”. Ao que tudo indica, a indústria vai desaparecer e o rap vai ficar cada vez mais forte, rico.

Para isso é vital a capacidade do rap de se adaptar a cada realidade que encontra. Chegou no Brasil e virou Racionais MCs, Bro MCs (rap indígena!), CUFA e funk carioca (eu estava do lado de Afrika Bambaataa quando ele chegou no baile do Complexo do Alemão, reconheceu seu filho e abriu largo sorriso); em Houston deu na desaceleração radical do DJ Screw; na Nova Zelândia fortaleceu a militância maori do King Kapisi; na Tanzânia foi dar pulos maasais com o X-Plastaz; na Tunísia fez Hamad Ben Amor virar El Général. Qual o mistério do rap, meu querido D2? Essa onda que ele tira, qual é?

reggaeton

02/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27-08-2010

Calle 13, dupla de rap/reggaeton, vem tocar no Brasil agora em setembro. Bateu por aqui uma inveja do bem. Há anos venho tentando emplacar seu nome na escalação de algum dos festivais em que trabalhei como curador. Sou fã tanto da poesia do cantor Residente, nome de guerra de René Perez Joglar, quanto da  arquitetura sonora e batidas de Visitante, Eduardo José Cabra Martinez – os dois nascidos em San Juan, Porto Rico. Já gostava das músicas que ouvia no MySpace, mas a Calle 13 me ganhou de vez quando vi algumas apresentações ao vivo que apareceram no YouTube: a dupla vira banda, ou melhor, vira uma grande orquestra latina, pós-hip-hop, com sopros, percussão e um balanço caliente para mesmo tradicionalistas da salsa não botarem defeito. Foram totalmente merecidos os dez Grammys Latinos e os dois Grammys americanos conquistados até agora.

Acompanho a apropriação do rap americano e do dancehall jamaicano por músicos de lingua espanhola desde o final dos anos 80. Participei da criação de Baila Caribe, série exibida na MTV, para a qual entrevistei os pioneiros do Latin Empire nas ruas do East Village nova-iorquino, no início dos anos 90. Escutava muito El General, do Panamá, e depois o mix de merengue com rap e house do Proyecto Uno. Tudo isso foi se misturando e circulando pela América Latina – inclusive na Amazônia brasileira, onde se tornou elemento importante para a invenção do tecnobrega paraense. Mas por algum motivo foi em Porto Rico que a mestiçagem de ritmos produziu seu filho de mais sucesso, o reggaeton, com uma batida eletrônica contagiante, logo copiada pela garotada de todo o planeta.

2004 foi o ano em que o reggaeton deixou os bairros latinos e conquistou pistas de dança pelo mundo inteiro, inclusive no Brasil. O responsável foi o cantor/”rapero” Daddy Yankee, com seu hit Gasolina. Sua batida, conhecida como Dem Bow, serve de base para muitas versões locais. Já escutei reggaeton malaio, japonês, senegalês, e dá para sentir a sua influência no kuduro angolano, via rap lusitano ou zouk cabo-verdeano. Mesmo Cuba não resistiu aos encantos da batida porto-riquenha: o “reggaton a lo cubano”, ou simplesmente cubaton, virou a nova febre musical na ilha de Fidel e pode ser conferido em cubanflow.com. Outro bom site para entender toda essa trajetória, inclusive suas mais recentes hibridizações, é o blog do etnomusicólogo/DJ Wayne Marshall, co-editor do melhor livro sobre reggaeton. É lá onde tenho notícias sobre as evoluções mais recentes do dembow dominicano ou a fusão desse dembow dominicano com o bubblin’, equivalente do funk carioca inventado nos bairros negros/caribenhos das cidades holandesas (como me diz o DJ Diplo há vários anos: Amsterdam é a nova Londres).

No Brasil o reggaeton faz sucesso principalmente em encontros de som automotivo, carros transformados em equipes de som ambulantes, com subgraves literalmente arrasa-quarteirões, que azucrinam a vida de quem quer um domingo silencioso e sossegado em periferias de todas nossas cidades. Os Señores Cafetões, de Goiás, fazem sucesso por todo interior das regiões Sul e Centro-Oeste, com sua mistura de reggaeton e funk carioca. O MC Priguissa, do Rio Grande do Norte, também já mixou o dem bow com o batidão do Rio, e foi adiante com embolada nordestina e carimbó paraense. Já o MC Papo, de Minas Gerais, faz a crônica da vida em favelas/aglomerados de Belo Horizonte, do pixo ao churrasco na laje, passando pela pegação com as piriguetes.

As letras do reggaeton, no mundo todo, não são muito diferentes das do funk carioca ou do kuduro: o assunto principal é sexo e há duplos sentidos para todos os gostos. Nisso a Calle 13 é diferente, começando pelos nomes de seus integrantes, Residente e Visitante, óbvia referência à política de imigração do governo americano. O tom militante, sobretudo na defesa do movimento de independência de Porto Rico, é evidente. Já no seu primeiro disco havia a faixa Querido F.B.I., produzida e lançada nas trinta horas depois do assassinato de Filberto Ojeda Rios, líder de Los Macheteros, grupo revolucionário porto-riquenho, e distribuída de graça na internet. Essa postura deu para a dupla credibilidade artística e possibilidade de circulação – em grandes festivais pelo mundo afora (incluindo o Festival de Jazz de Nova Orleans e uma performance para mais de 500 mil pessoas em Cuba) e em colaborações com artistas de outros estilos como a canadense/portuguesa Nelly Furtado, os mexicanos “avant-roqueros” do Café Tacuba ou a “rapera” espanhola La Mala Rodrigues – que outras estrelas ligadas ao reggaeton, sempre consideradas comerciais-demais ou difusores de baixarias, nunca conseguiram obter. Por essa e por outras, estão vindo tocar o Brasil.

Ao que tudo indica, no Brasil a Calle 13 fará show só em São Paulo. É um bom motivo para ser visitante, como o Visitante, na capital paulistana. Podemos ir testando o som automotivo na Via Dutra.

urbanidade africana

28/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 16-07-2010

Muita gente apostou que a Copa 2010, por ter sido realizada num país africano, seria o caos. As previsões preconceituosas indicavam explosão da criminalidade, com todos os turistas como vítimas, sobretudo em Johannesburgo, ainda classificada como “anticidade” mesmo por jornalistas brasileiros. Porém, campeão anunciado, os resultados em termos de violência foram insignificantes. Na falta de notícias piores, até a maconha da amiga de Paris Hilton foi celebrizada como escândalo internacional. A África do Sul conseguiu uma vitória simbólica: no imaginário global o continente negro já ocupa outro lugar, menos estereotipado. “A Fifa se vê aliviada”? Os efeitos não são apenas de mão única. Como disse Danny Jordaan, executivo da Copa, para o New York Times: “Não houve só as pessoas vindo aqui para descobrir a África do Sul. Houve os sul-africanos descobrindo a si mesmos.” O ex-presidente Thabo Mberi também afirmou que o evento pode ser interpretado como “uma declaração para nós mesmos de que temos a capacidade de mudar.” Os encontros entre culturas diferentes, quando bem realizados, têm esta capacidade: transformam, para melhor, o modo como nos vemos e como os outros nos veem.

Visitei Johannesburgo em 1997, três anos depois das primeiras eleições livres pós-Apartheid. Estava vindo de Moçambique, onde participara da filmagens de Além-Mar, série de televisão sobre lugares do mundo onde se fala o português. Tive um dia de folga. Todos os membros da equipe quiseram conhecer os animais do Kruger Park. Eu, que não tenho muita curiosidade com relação a feras rurais, resolvi descansar sozinho na selva urbana. A oportunidade era rara: sabia que Jozi, como seus habitantes típicos carinhosamente chamam a cidade, estava hospedando uma bienal de arte contemporânea.

Fiquei num hotel perto do aeroporto. Deixei minha bagagem no quarto e sai imediatamente para pegar um táxi, que me levaria ao local de uma das exposições, no centro da cidade. Quando mostrei o endereço para o taxista zulu, ele me olhou assustado, dizendo que eu não deveria ir lá de jeito nenhum, pois seria assaltado na certa. Ou pior: seria espancado, sequestrado, e iria acordar amordaçado num barraco de Botswana, país vizinho. Minha resposta: “eu me garanto: vivo no Rio, cidade perigosíssima!” O senhor cedeu aos meus temerários desejos de arte esquisita. Mas vi que sua preocupação era sincera, tanto que não me deixou sair do carro antes de até a porta do museu para se assegurar que havia realmente uma exposição acontecendo dentro do edifício. Passei algumas horas entre obras de arte, mas na saída resolvi arriscar ainda mais, passeando pelos arredores como o único “branco” (nunca quis ser branco, mas ali não tinha como convencer ninguém da minha condição mestiça) naquelas ruas. Depois de vários quarteirões entrei numa loja de discos, onde tive conversa ótima com os donos congoleses (eles ficaram encantados quando souberam que eu conhecia Kinshasa, onde tinha visto os grandes criadores da rumba zairense ao vivo), mas não encontrei nenhum disco de kwaito, a música que descobrira no rádio do táxi e era tão nova que não tinha discos à venda (e preciso declarar: uma cidade que produziu músicas tão excelentes quanto o kwaito e a mbaqanga não pode de maneira alguma ser uma anticidade). Fui então aconselhado a sair daquele bairro imediatamente. Obedeci.

Ainda bem que estive na Bienal. A exposição tem ainda hoje importância crescente, quase mítica. Acabou com a ideia de que a África só tem arte tradicional ou folclórica, revelando dezenas de novos criadores tão modernos quanto Hélio Oiticica ou Jeff Koons. A curadoria catapultou o nome do nigeriano Okwui Enwezor para a lista de mais poderosos da arte contemporânea, levando-o a comandar, anos depois, uma edição muito importante da Documenta de Kassel. Talvez essa Bienal tenha sido um dos motivos, mesmo indireto, que levaram o arquiteto Rem Koolhaas a fazer um grande estudo sobre a urbanidade de Lagos, megalópole da Nigéria que passou a ser vista como o “futuro” das cidades do mundo todo. A visão de Koolhaas por sua vez serviu de incentivo para novas pesquisas urbanísticas em cidades da África, feita por africanos e estrangeiros, que trazem algumas das ideias mais interessantes originais do pensamento de hoje, em qualquer área. Gosto especialmente dos escritos de Achille Mbembe, sobre a “superfluidez” de Johannesburgo, e de Abdoumaliq Simone, sobre a “espectralidade” de Douala. Mas indico com entusiasmo absoluto qualquer coisa que Filip de Boeck publica sobre Kinshasa, radicalizando ainda mais as ideias de Simone (corpos e pessoas, e não edifícios, como infraestrutura – pois infraestrutura não-humana ali é miragem) e propondo uma análise das cidades como “arquiteturas do verbo”. Tomara que esse afro-pessoal passe um dia no Brasil para estudar nossas metrópoles, também produtoras de precariedade e desigualdade radicais, e ao mesmo tempo de misteriosa e resistente vitalidade cultural. Gosto sempre de olhares estrangeiros que possam desafiar nossos próprios olhares, combatendo a preguiça de refletir sobre o novo de maneira nova.

NOTÍCIAS DO OVERMUNDO: Sou sempre bem surpreendido por cada música lançada pelo MC Priguissa, de Natal. Sua base é o ragga eletrônico jamaicano, mas cheio de outras bossas: reggaeton, embolada, funk carioca, e agora também carimbó e guitarrada. Confira neste link. Lançamentos da Coletivo Records, que mapeia as ecléticas novidades da produção musical potiguar.