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Julian Dibbell

23/04/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15/04/2011

Julian Dibbell, segundo Caetano Veloso, é jornalista “que sabe muito sobre música popular brasileira – e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema”. O elogio, em “Verdade tropical”, se referia especificamente ao artigo de 1988 e do Village Voice, onde Julian caracterizava “João Gilberto como o Elvis do Brasil”. A afirmação, feita “quase em tom de brincadeira”, se revelava como “imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira.” Minha amizade de quase três décadas com Julian sempre teve este efeito sobre minha mente: incentivo poderoso para enxergar o Brasil e o mundo de forma renovada. Minhas descobertas são sempre mais alegres quando compartilhadas com (ou estimuladas pelo) Julian. Para mim, nada de melhor se pode viver com um amigo.

Aquele Julian que comparou João Gilberto e Elvis parece personagem de outra encarnação, na qual poderia ter sido importante brasilianista ou crítico musical. Eu o conheci quando era um daqueles estudantes estrangeiros que a PUC recebe no Rio. Impressionava seu português (costumo dizer, sem brincadeira, que meu português é pior que o dele), aprendido por acaso com professor mórmon que deu aula de graça na sua “high school”. Causava também espanto seu conhecimento sobre a música brasileira dos anos 60, muito antes do tropicalismo virar moda mundial com o empurrão de David Byrne (que, levado por Arto Lindsay, apareceu uma vez na minha casa, quando Julian era meu hóspede. Byrne, pouco depois de ser capa da Time, estava lançando True Stories no Rio. Arto me apresentou Byrne e Caetano. Julian e Beth Nolasco me apresentaram Arto – eu era fã de sua banda DNA mas não sabia de suas conexões brasileiras, descobertas quando Julian o entrevistou para seu – e de Joe Levy, que depois foi editor da Rolling Stone – fanzine Nadine, publicado em Yale. Como já repetiu Caetano: este mundo é um pandeiro.)

Descobrimos, eu e Julian, o cyberpunk ao mesmo tempo. Ele leu meu exemplar de “Neuromancer”. Julian voltou para os EUA no final dos anos 80 e, por cartas, começou a me falar sobre as maravilhas da internet. Encontrei o Alternex, do Ibase, que era a única porta de acesso – fora de governo e poucas universidades – à internet no Brasil. Deixamos o papel de lado para trocar mensagens por email, que naquela época exigia a memorização de dezenas de comandos Unix. Também nos encontrávamos virtualmente no LambdaMoo, um bisavô do Second Life que funcionava só com texto, pois a web ainda não fora inventada. Apesar do novo tipo de proximidade, senti que os computadores podiam nos afastar. Julian trocou de avatar: parou de escrever sobre música e o Brasil, e virou pensador/desbravador da vida on-line.

Em 1993, ainda no Village Voice, apareceu “Rape in cyberspace”, artigo hoje clássico para os estudos sobre a internet, falando sobre a confusão virtual/real dentro do LambdaMoo. Esse texto se tornou o primeiro capítulo do seu livro “My tiny life” e mote para muita coisa que publicou nos anos pioneiros da revista Wired. Julian foi mergulhando cada vez mais no mundo ciberespacial, e chegou a se tornar – na vida real – comerciante de itens de games on-line, com os quais ganhou quase tanto dinheiro quanto como jornalista, experiência narrada no livro “Play money”, cuja sequência foi reportagem na China – para o New York Times – sobre as “gold farms”, lugares onde garotos trabalham em regime de semi-escravidão produzindo dinheiro de jogos virtuais, depois convertidos em dinheiro real.

O feitiço brasileiro não iria deixar Julian escondido em algum lugar obscuro da rede, fora do nosso alcance. Há até uma lenda de que ele teria sido um dos maiores responsáveis pela disseminação do Orkut no Brasil. Não foi bem assim: entrei no Orkut a convite do pessoal da Insite paulistana (que tinha algum contato interno no Google – acho que foi ali que a onda brasileira do Orkut começou). Não sei se mandei convite para o Julian ou se o encontrei depois por lá. Sua contribuição para o ciberespaço brasileiro foi menos apoteótica, mas talvez mais decisiva. Gil iria fazer sua primeira viagem como ministro para a Midem, feira da indústria fonográfica. Descobri que John Perry Barlow, autor da “Declaração de independência do ciberespaço”, faria palestra no evento. Pedi ajuda a Julian, que colocou Gil em contato com Barlow.

Na época, Julian dava aula com Lawrence Lessig, do Creative Commons, em Stanford. Pouco tempo depois os dois mais Barlow e Gil participaram de um seminário sobre direito e internet organizado no Rio por Ronaldo Lemos e a FGV. Meses adiante, eu estava com Julian em São Paulo, entrevistando José Serra sobre patentes e genéricos e em seguida, ciceroneados por Sérgio Amadeu e João Cassino, visitando telecentros, para uma matéria da Wired que foi lançada com show pró-Creative Commons, de Gil e Byrne, em Nova York.

Lembrei de tudo isso ao ver a palestra (vimeo.com/21964000) que Julian deu em Copenhagen na semana passada, sobre games e morte. Reflexão mais uma vez original e estimulante, complexificando a relação entre computadores (a metafísica/máquina de Alan Turing) e violência. Devemos aproveitar suas últimas incursões nessa área. Ainda este ano, Julian vai abandonar o tecnojornalismo por uma pós-graduação em Direito. Nova mutação em sua carreira. Tomara que o Brasil o encontre novamente, logo mais, à frente.

clássico

19/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 26/11/2010

A morte de Henryk Górecki, dia 12 deste mês, me fez recordar meu amor pela música clássica. Fui escutar, pela enésima vez, sua “Sinfonia nº 3”. É uma das criações humanas mais comoventes e belas que conheço. Sei que não é cool fazer essa declaração. É uma música querida demais. Quem quer tirar onda, geralmente escolhe composições menos óbvias para elogiar. Mas não importa: já disse que sou pop, gosto do que todo mundo gosta. E também sou fã de coisas simples ou facilmente bonitas. A “Sinfonia nº 3” é bonita de dar dó, e essa beleza já foi reconhecida por muita gente, mesmo tardiamente. Interessante a história de sua recepção. Foi composta em 1976 e teve críticas ruins em premières. Górecki era conhecido por pouquíssimos e continuou assim até que, em 1992, o selo chique Nonesuch – o de Caetano nos EUA – lançou uma gravação dessa obra, que vendeu cerca de um milhão de CDs. Uma surpresa enorme, até para seu autor, acostumado à obscuridade e com quase 60 anos. O reconhecimento e o sucesso podem acontecer quando menos se espera.

Esses fenômenos raros de grande aceitação popular para sinfonias e compositores “eruditos” me anima. Amo música clássica, mas detesto o ambiente que a cerca (que também se alastra em torno de vinhos, azeites, cadernetas…), transformando-a em símbolo careta de status intelectual, de superioridade diante das “massas” que preferem (ou, segundo a cartilha elitista, são obrigadas a preferir, pela ignorância) músicas de “baixa” qualidade. Nunca entendi porque não posso gostar de Anton Webern e Aviões do Forró, igualmente, ou por razões diferentes. Nunca tolerei políticas culturais que querem transformar o Brasil numa grande Sala São Paulo, com aquelas tolas brigas de poder na Osesp. Tudo isso é muito caipira (no mau sentido, pois sou fã de outras festas caipiras). Como também é ridícula a pompa do Lincoln Center, mesmo quando toca meu Mahler ou Monteverdi preferido.

Por que as pessoas não tratam o concerto clássico como algo normal? Por que tanta afetação, tantos símbolos ostensivos de reverência? Por que aquele silêncio sepulcral na platéia? Como desvenda Christopher Small, em  “Musicking” (talvez o melhor livro sobre música, só comparável ao hilário “Music and words”, do Paul Morley), mesmo quem fica relax nos concertos, precisa sinalizar para todos o relaxamento (como o passageiro freqüente que só toma água, evidenciando para companheiros de cabine que a primeira classe é o seu habitat natural). Prova de que nasceu entre maestros e Stradivarius.

Muitos se esquecem como essa atitude é recente. Salas de concerto, com público quieto, existem há pouco mais de um século. Christopher Small cita um quadro de Canaletto retratando a rotunda de Ranelagh, na Londres de 1754, local onde tocaram Handel e, ainda criança, Mozart. A maioria do público nem presta atenção na orquestra. Está ali para conversar, comer, brincar com as crianças, dar pinta. A música é um “plus a mais” no jogo da diversão social, não uma ditadura sonora de bom gosto divino, não uma palmatória pedagógica. Como seria saudável ter de volta aquela “ingenuidade”.

A história da música clássica foi violentamente expansionista. Pense nos departamentos de música das universidades. Até recentemente, música ali era apenas a música clássica ocidental. Musicologia também significava o estudo da tradição ocidental, como se todas as outras músicas não fossem dignas do mesmo interesse. E mesmo que isso afastasse a maioria dos ouvintes (tanto que, quando havia indústria fonográfica, o mercado da música clássica equivalia a apenas 3% do total das vendas), não importava: ser culto minoritário era parte do seu charme. Era preciso afastar o povo do ritual do concerto, mesmo quando o discurso parecia clamar pela “inclusão”.

Uma recente palestra de David Byrne conta como a existência das modernas salas de concerto modificou a composição musical. Como o público passou a ficar em silêncio, e como a acústica se tornou cada vez melhor, sutilezas sonoras passaram a poder ser percebidas pela audiência, e o que antes era inaudível ganhou destaque. Os compositores, tendo em mente o lugar onde suas obras seriam executadas, passaram a criar para essas novas possibilidades e nova atenção de quem estava na platéia. Mesmo John Cage, quando compôs “4’33” de silêncio, buscava se comunicar com esses mesmos públicos, que estariam nesses mesmos ambientes.

Byrne não fala só de música clássica. Sua argumentação explora a relação entre músicas, lugares onde elas são tocadas, e recursos para sua gravação. O aparecimento dos microfones ou do registro de cada instrumento em faixas diferentes (que depois são mixadas), por exemplo, abriram espaço para novos estilos vocais ou instrumentais ganharem popularidade.

Hoje, a era da alta-fidelidade parece ter terminado. As pessoas escutam música em tocadores de MP3 com qualidade “lamentável”. Outros detalhes importam mais, sobretudo o que está em volta da música (a camiseta com o nome da banda?), o jogo social incentivado pela música. De maneira inesperada, voltamos à rotunda pintada por Canaletto. Quem sabe se a música clássica não pode ser salva, junta e misturada à confusão ringtone do mundo? Salve Mozart, autor de um dos mais populares toques de celular!