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minc-cc

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/01/2011

O plano era passar um tempo sem falar em direito autoral por aqui. Há outras coisas interessantes no mundo. Também seria deselegante parecer estar pressionando a ministra da cultura a ter rápida posição sobre o assunto. Posse em ministérios exige calma e tempo. Como a história de Ana de Hollanda comprova disposição para diálogo, pensava que era isso que pedia em suas primeiras manifestações como ministra, declarando que só voltaria a falar sobre a reforma da Lei do Direito Autoral quando tivesse tempo para estudar com calma o projeto apresentado pela gestão Juca/Gil.

Estava então imerso em outros temas quando fui surpreendido pela barulheira no Twitter. A causa? O site do MinC, na calada da noite, havia trocado o licenciamento Creative Commons por declaração vaga: “O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”. Diante do protesto, foi publicada nota de esclarecimento, falando erroneamente em referência e não em licenciamento: “A retirada da referência ao Creative Commons da página principal do Ministério da Cultura se deu porque a legislação brasileira permite a liberação de conteúdo. Não há necessidade do ministério dar destaque a uma iniciativa específica. Isso não impede que o Creative Commons ou outras formas de licenciamento sejam utilizados pelos interessados.” Esclarecimento nada esclarecedor, que coloca ponto final em conversa que não teve início.

Volto ao assunto Gov 2.0, que dominou esta coluna recentemente. O site culturadigital.br, hóspede dos debates sobre o Marco Civil da Internet e a Classificação Indicativa, iniciativas do Ministério da Justiça, tem seu conteúdo publicado sob uma licença Creative Commons (CC). O blog do Palácio do Planalto tem licença CC (diferente da usada no culturadigital.br). O site da Casa Branca dos EUA “é” CC. O blog do Departamento de Finanças da Austrália é CC. Já o OpenData do governo britânico é diferente: não tem licença CC. Porém, seus responsáveis criaram uma outra licença, a Open Government Licence, parecida com uma licença CC, mas com outros detalhes e finalidades.

O MinC deveria ter seguido o exemplo do governo britânico. Ninguém é obrigado a usar licenças CC. Mas alguma licença é necessária (assim como, mesmo com uma legislação trabalhista geral, precisamos assinar diferentes contratos ao iniciar novos trabalhos). A declaração do MinC (“O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”) não é uma licença, não tem validade jurídica. Sim: a legislação brasileira já permite a “liberação” de conteúdo. As licenças CC-BR são totalmente baseadas na legislação brasileira – não propõem nada que essa legislação não permita. Sua novidade é dar uma redação juridicamente clara para a autorização prévia de alguns, não todos, tipos bem específicos de utilização desse conteúdo. Por exemplo: sua reprodução, sua tradução, sua “remixagem” etc. – dependendo da licença escolhida.

Se o novo MinC não queria sigla CC em seu site, que pelo menos se desse tempo para criar uma nova licença válida em tribunais, como fez o governo britânico. Isso não se faz apressadamente. Bons advogados são necessários para esse trabalho, que pode custar caro aos cofres públicos (vantagens das licenças CC: já estão prontas, são válidas juridicamente, são compreensíveis em qualquer lugar do mundo e ninguém precisa pagar para utilizá-las). Com a pressa, o conteúdo do site do MinC e as pessoas que reproduzem esse conteúdo estão agora desprotegidos. (E com muitas dúvidas. Um exemplo: o conteúdo do site pode ser usado para finalidades comerciais? Acredito que sim, mas o texto não deixa isso claro.) Essa atitude não incentiva a defesa dos direitos autorais e sim cria um clima de “ninguém precisa licenciar nada” ou vale tudo.

Já há muita complexidade no debate sobre direito autoral. O MinC não pode atuar para criar confusão. Precisamos de licenças e regras claras. O CC prega exatamente o contrário do liberou geral. Com suas licenças todo mundo fica sabendo exatamente o que pode ou não fazer com cada conteúdo, seguindo as determinações de seus próprios autores. Ninguém “abre mão de seus direitos” e sim exerce mais plenamente seus direitos ao estabelecer o que pode ser feito com suas obras. Para “liberar” (prefiro dizer “autorizar”) alguns usos do conteúdo produzido seja em sites governamentais ou privados, precisamos deixar clara que liberação é essa. Sem algum tipo de licença, a lei entende que ninguém pode fazer nada com esse conteúdo, sem autorização a cada vez que for usado para qualquer fim. Uma experiência como a Wikipedia, onde podemos a todo momento editar o texto dos outros, seria ilegal se não acontecesse com licença clara que autoriza a reedição contínua.

Não estou aqui para pedir a volta da licença CC. Quanto mais licenças, melhor: aumentam nossas opções, segurança e legalidade. Seria ótimo que o MinC fizesse a crítica das licenças CC, para aperfeiçoá-las em outras licenças. Que comece logo o diálogo, com calma e tempo. Agradeço a Caetano Veloso por ter, em sua coluna do domingo passado, expressado seu desejo que é uma (boa) ordem: precisamos de uma “conversa produtiva” entre todos os grupos interessados em “levar o Brasil para a frente sem perder a dignidade.”

Gov 2.0

23/02/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/01/2011

Na coluna da semana passada, apenas para introduzir o debate sobre classificação indicativa, falei de Gov 2.0. O assunto merece mais atenção do que aquele parágrafo introdutório. Tudo bem, o Segundo Caderno não é lugar para falar de política sem ligação clara com o mundo da cultura. Porém, não tenho nem dúvida: por trás do Gov 2.0 está acontecendo uma das transformações culturais mais interessantes deste novo século, que redefine o lugar da política em nossas vidas. O fato de ter o onipresente 2.0 na sigla é apenas mais uma evidência de suas conexões para além do Estado, para além da política convencional.

Hoje tudo é 2.0. Há medicina 2.0, educação 2.0, marketing 2.0 etc. Isso tem a ver com a utilização da internet em todos esses ambientes, mas não é só a tecnologia que importa, ou o que mais importa. A mudança principal acontece no relacionamento entre as pessoas, sendo praticamente irrelevante se estão em contato para fazer publicidade, política ou tratamento médico. Cada uma dessas áreas, mesmo com a resistência de antigos detentores do poder, tem agora que se abrir para a colaboração de todos. Não são mais caminhos de mão única, do centro para a periferia dos vários saberes e práticas. São redes, de muitos para muitos, sem distinção precisa entre quem fala e quem escuta, quem produz o “conteúdo” e quem o consome, quem manda e quem obedece.

2.0, em muitos contextos, é quase sinônimo de aberto, seguindo o modelo informático do “código aberto” (ou “open source”, em inglês, que por sua vez é quase sinônimo de “free software“, mas não há espaço aqui para abordar as sutis – e não tão sutis assim – diferenças políticas nas quais essas denominações se fundamentam). Gov 2.0 pode ser traduzido por governo aberto, ou “open government”. Tem gente que diz que hoje a abertura da internet está ameaçada (ou “a web está morta“) por causa de fatores tão díspares quanto o modelo de negócios do iPad, as “apps” de celulares, a reação anti-ou-pró-wikileaks, ou o cada vez mais poderoso combate reacionário contra a “neutralidade da rede“. Talvez tenham razão, se olharmos só para a rede. Mas se considerarmos a maneira como os princípios “libertários” da abertura da rede se “infiltraram” no mundo “off-line” (será que ainda dá para separar on-line de off-line?), o panorama é mais favorável a ambições democráticas. Um dos elementos dessa “expansão” aberta é bem visível: os pensamentos de muitos governos estão cada vez mais parecidos com os dos hackers.

As experiências do governo brasileiro felizmente não são únicas. Há países em que a “abertura” do modo de se governar acontece de forma mais planejada e consistente. A Casa Branca, por exemplo, criou a Open Government Initiative, que tem como lema “transparência, participação, colaboração”. São palavras do presidente Obama: “A abertura vai fortalecer nossa democracia e promover eficiência e eficácia no governo.” Já os australianos criaram um termo mais viril: não fizeram uma iniciativa e sim uma Government 2.0 Taskforce, que busca “promover transparência, inovação e agregar valor à informação governamental.”

Acompanho com mais atenção as experiência do governo do Reino Unido, até porque muitas delas são lideradas por Tim Berners-Lee, o inventor da web 1.0, que já promete a 3.0 (ou web semântica, em que os dados poderão “conversar” entre si, produzindo novos usos para as informações, sem interferência humana). Na “Spending challenge“, a Secretaria do Tesouro de Sua Majestade organizou uma elaborada consulta para que todos os cidadãos pudessem sugerir cortes de orçamento. Em “YouFreedom“, os súditos da Rainha podiam dizer que leis queriam ver abolidas.

Na semana passada, o site O’Reilly Radar (capitaneado por Tim O’Reilly, o inventor do termo “web 2.0” e o organizador do Gov 2.0 Summit que aconteceu em Washington em 2011) publicou uma lista de organizações de “inovação cívica” cujos trabalhos devem ser acompanhados de perto em 2011. Só ideias extremamente bacanas. Como a da organização “Code for America“, que tem como objetivo criar aplicações que ajudarão o governo a oferecer melhores serviços para os cidadãos. Ou a “Civic Commons“, que inventa sistemas para que prefeituras possam compartilhar softwares, não precisando pagar para criar programas que já foram desenvolvidos em outras cidades, ou mesmo em outras secretarias da mesma cidade.

Claro que nada disso significa a conquista da utopia. O motor da democracia é a crise, e maiores liberdades são conquistadas em meio a crises constantes. Como diz o historiador Pierre Rosanvallon, do Collège de France, em debate recente promovido pela revista “Le nouvel observateur“: o ideal democrático se sustenta sobre eternas contradições: entre a representação e o “movimento direto”; entre votar em quem pensa como pensamos e votar nos governantes mais eficientes; entre o “povo” e o “indivíduo”; entre a eleição como momento do “yes we can” e a pós-eleição como império das dificuldades para se fazer o que podemos…

Rosavallon alerta: “formas de progresso democrático podem também mascarar tentações de regressão.” É preciso que todas essas ferramentas de governo colaborativo não se aliem a populismos que querem promover a descrença total em processos eleitorais.  O Gov 2.0 vai precisar sempre de um bom Gov 1.0.

presente/futuro indicativo

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/01/2011

O Estado brasileiro, sem muito marketing, anda fazendo experiências interessantes no campo “aberto” que ficou conhecido como “Gov 2.0“. Temos desde iniciativas pioneiras, como a adoção das urnas eletrônicas, a serviços e dados públicos disponíveis online, além de consultas para elaboração de novas leis. Um exemplo concluído com sucesso foi o projeto do Marco Civil da Internet, facilitado pelo Ministério da Justiça. Seguindo, esse modelo, o mesmo ministério mantém aberto, até o dia 28 de janeiro, o debate sobre Classificação Indicativa. Todo mundo interessado na educação de nossos adolescentes e crianças deveria participar.

Um dos problemas do Gov 2.0, mesmo para entusiastas como eu, é arrumar tempo para participar. Essa vai ser uma das angústias da nova democracia eletrônica. Tudo será cada vez mais transparente e colaborativo. Mas como escolher em que colaborar, diante de tanta demanda e da farta documentação para ler antes de colaborar direito/direto? Vamos ter que fazer mais esse aprendizado.

A classificação indicativa, por exemplo, é um debate que me interessa muito, mas no meio de todas minhas atividades, chegava lá no site e era tanta coisa para estudar que, não querendo ser leviano diante de questão que levo tão a sério, sempre adiava minha participação. Fui lendo aos poucos, mas ainda não consigo participar. A leitura me deixou com dúvidas muito básicas, de pano de fundo, que atrapalhariam a conversa mais pragmática que está acontecendo no debate online.

Correndo o risco do texto ficar ainda mais (já que inevitavelmente vou parecer leviano) contraditório: minhas dúvidas têm origem em observações bem pragmáticas, frutos do convívio diário com adolescentes e crianças. Muitas vezes, como educador, entro em pânico e não tenho a menor idéia do que fazer: precisaria de outros tipos de classificações indicativas para me guiar. Tento impor regras domésticas de utilização de mídia. Mas vejo que de nada adiantam regras isoladas. A garotada de hoje, independentemente da classe social (meu trabalho me faz andar muito em favelas de todo o Brasil, vejo isso acontecer em todos os lugares), deixou de ser espectadora de mídias e passou a produzir conteúdos que podem ser vistos por gente de qualquer lugar do planeta.

Cada vez mais crianças publicam fotos e vídeos no Orkut, ou brigam com os colegas via Formspring. Pensando em criar regras comuns entre os vários amigos dos meus sobrinhos, fui dar uma palestra no seu colégio. Comecei a falar, para uma turma do quinto ano, como se estivesse no palco de peça infantil boba. Uma menina de 10 anos me interrompeu e perguntou na bucha: “é possível mesmo rastrear IPs?” Ela estava preocupada com uma acusação de que teria criado, com photoshop, imagens comprometedoras dos colegas para publicar em perfis “fakes”. Tive que respirar fundo e mudar de tom: estava diante de gente cibergrande.

O debate sobre a classificação indicativa ainda tenta separar produtores de espectadores, mídia física de mídia virtual. Fico com a impressão que estamos tentando legislar sobre o passado, sobre tecnologias e práticas obsoletas. (Até quando as pessoas vão usar DVDs? Até quando as pessoas vão ver TV na hora que a TV quer?) No site, há uma explicação sobre a diferença entre jogos “puramente virtuais” e jogos que precisam ser instalados “em seu aparelho”. O problema é que as novas tecnologias misturam tudo isso. Muitos jogos hoje incentivam a criação de novas etapas do próprio jogo, que podem ser distribuídas pela internet. O jogador vira co-autor. Quem vai classificar o que todos esses milhões de produtores de conteúdo publicam o tempo todo?

Outro problema que me distancia do debate que acontece por lá: o Manual da Nova Classificação Indicativa, sugerido como fonte para as reflexões, parece partir de uma visão que Umberto Eco, há muito tempo, chamava de “apocalíptica”: conteúdos violentos geram pessoas violentas. São citadas pesquisas sem indicação bibliográfica – sempre aparecem como “algumas pesquisas” ou “alguns estudos” – que comprovam essa visão. Eu posso citar “outras pesquisas” que colocam esse “consenso” em dúvida. Ver por exemplo a imensa bibliografia do livro “Brincando de matar monstros: por que as crianças precisam de fantasia, videogames e violência de faz-de-conta“, de Gerard Jones. Ou os argumentos de “Supreendente! A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes“, livro de Steven Johnson.

Porém, mesmo que todos esses contra-argumentos não façam sentido: a TV brasileira corta as cenas violentas de Naruto, desenho preferido pela garotada. A garotada vai para a internet, baixa e aprende japonês para legendar a versão original sem cortes e distribui para os amigos em “perigosos” sites de torrent. Eis a política bem intencionada incentivando a pirataria?

Talvez eu seja, para continuar usando a terminologia pré-histórica de Umberto Eco, “integrado” demais para entrar nesse debate. Não tenho nem sugestões para dar, a não ser uma bem óbvia e abstrata: esses problemas não vão se resolver com cortes, ou horários de exibição; a solução é educação. Educação não apenas para consumo consciente de mídia, mas para produção de mídia. Desde os primeiros anos da escola. Nessa aula, tenho certeza, as crianças vão poder ensinar muitas coisas para os professores.