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Kraftwerk de palafita

10/05/2020

Ainda sobre Vladimir Cunha: ele também me mostrou o trabalho que vem fazendo com a banda Strobo. Como aperitivo, aqui um clipe que é parte de um filme, que Vlad – o diretor – chama de “ficção musical”. Mais explicações: “O conceito do filme é baseado naquela tua definição do tecnobrega: o Kraftwerk de palafita.” Sim, eu usei a expressão “Kraftwerk de palafita” em artigo de 2003. Na época era ainda um delírio de festa de aparelhagem, no princípio da nova aventura estética paraense. Agora temos sua tradução fílmica hiper-real, clara, explícita,  mesmo com imagem sempre em modo lusco-fusco. É futurismo-urbano-amazônico, musical e visual, driblando a precariedade, incorporando a precariedade, inventando novos corpos elétricos periféricos-centrais, novos usos da tecnologia de ponta muito longe do Vale do Silício.

Muito estranho encontrar novamente a expressão “Kraftwerk de palafita”, e ver esse filme impressionante (ficou gravado na minha imaginação o plano da câmera-drone sobrevoando o imenso rio com mudanças de ângulo desnorteadoras), quase ao mesmo tempo em que soube da morte de Florian Schneider. Kraftwerk para mim é a melhor criação da arte moderna (e como gosto mais de arte moderna do que de qualquer outra arte, posso afirmar: é a melhor criação da arte), incluindo literatura, pintura, performance, teatro, dança e tudo mais. Nunca vou me cansar de ouvir os seus discos. Vi dois de seus shows (com Florian & Ralf): aula de tudo o que é bom, realizada de forma impecável. Nada é de palafita no Kraftwerk. Sua obra não admite o improviso, o precário, ou o tosco. Cada som e cada beat é perfeito. Cada evento calculado milimetricamente, nada fora de lugar. A qualidade do resultado é tão sublime que não se contém em si: acaba se espalhando para todos os cantos, elevando todo o resto (hip hop, techno, house, David Bowie…)

Gosto também de muita coisa tosca. Mas tosco seguindo algum aspecto das lições do Kraftwerk é muito melhor. Kraftwerk de palafita, muito acima de qualquer enchente ribeirinha, é também arte elevada.

PS1: Estou lendo, absolutamente maravilhado, Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida – Goethe chamava tudo que gostava de “elevado”. Bem alemão.

PS2 – Para entender Florian Schneider ler este artigo de Simon Reynolds.

bots e humanos

14/04/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/04/2011

Fotos no Twitpic revelam que havia sim humanos, com óculos 3-D de aro branco, na platéia da retrospectiva do Kraftwerk no MoMA de Nova York, iniciada terça-feira. Depois do congestionamento na fila virtual, quando os ingressos se esgotaram em uma hora e meia, e foram vendidos para apenas 1,2% daqueles que ali viveram inédito sufoco cult-eletrônico, surgiu boato nas redes sociais afirmando que somente robôs tiveram sucesso na compra. Ainda não descartei tal possibilidade. Um exército de programas-robôs, preparados para entrar na fila com a pontualidade de relógios atômicos, pode ter sido comandado por hackers-cambistas, que depois venderam as entradas por até 50 vezes mais que o preço inicial generoso só permitido com patrocínio. Se isso aconteceu, seria cumprimento perverso da profecia do próprio Kraftwerk, autor da música “The robots”, cuja letra dizia: “fomos programados para fazer tudo que você quiser, nós somos os robôs”.

“The robots” abre o álbum Man Machine, de 1978. Não é caso isolado na obra do Kraftwerk, que tem na reflexão sobre a relação homem-máquina (mesmo bicicleta, ou aparelho de eletrocardiograma, vedetes de faixas de “Tour de France”, seu disco mais recente) um de seus eixos principais. Vi os dois shows da banda no Tim Festival. O primeiro, em 1998, era executado por toneladas de equipamento. Computadores ainda eram enormes naquele século. Em 2004, o mesmo resultado sonoro e visual foi obtido apenas com laptops. Na platéia era sempre impossível distinguir o programado do improviso, o que as máquinas ou os humanos tocavam. Quem acha playback inautêntico, um atentado contra a verdadeira música, fica indignado com apresentações do Kraftwerk. Em 1998, as cortinas se abriam, as máquinas já estavam tocando sozinhas, os músicos só entravam no palco vários minutos depois. Quando os humanos iam para o camarim, no final do show, os computadores continuam fazendo a platéia dançar. Os componentes do Kraftwerk eram nossos professores numa aula extremista sobre arte conceitual. O que importava era a idéia – genial – e não quem a executava. A “mão” humana ocupava lugar assumidamente secundário no espetáculo.

Um momento muito esperado em todos os shows é quando robôs físicos aparecem no palco para fazer sua dança mecânica. Todos os movimentos são primários, repetitivos, mas a reação do público é sempre de fascínio. O futurismo do Kraftwerk tem ar retrô, apesar de ser produzido com tecnologia de ponta. Talvez nunca tenhamos robôs como aqueles, com corpos que imitam o dos humanos. Hoje temos “bots” espalhados pela internet em forma de cookies ou vírus cada vez mais inteligentes (comprar ingressos antes de nós é bobagem perto de suas outras atividades, que talvez não consigamos mais controlar). Dizem que mais da metade do tráfego da rede é feito por esses “seres” artificiais, com seus corpos de bytes.

O historiador da ciência George Dyson, que acaba de publicar livro sobre a pré-história dos computadores nos porões de Princeton, lembra que se antes os computadores eram chamados de “cérebros eletrônicos” (pois tentavam simular o modo humano de pensar), hoje é a química reprodutiva da vida, embutida em códigos genéticos, que inspira o desenvolvimento dos robôs que vivem on-line. Dyson chega a perguntar: para que nos preocuparmos com viagens interplanetárias de corpos físicos? Mais útil seria mandar bots virtuais explorar os confins do universo (e quantos bots já há em atividade no telescópio Hubble, olhando o que não podemos ver?)

Quando damos nossas voltas na internet, muitas de nossas interações são feitas com entidades não-humanas, que se comportam como gente. Muitos perfis em redes sociais são fakes bem especiais: não há pessoas ali “atrás”; há bots tentando se passar por humanos. E quando eles, como a Rachel de Blade Runner, acreditarem que são humanos, ou mais humanos que os humanos? Serão nossos melhores companheiros? Nossos herdeiros imortais?

Como escrevi na coluna passada, enquanto estava na fila para comprar ingresso para a retrospectiva do Kraftwerk, fazia em contato, em outra “aba” do meu browser”, via redes sociais, com milhares de pessoas que viviam o mesmo perrengue. Essa já é nossa “realidade aumentada”: habitamos o mundo real e o mundo virtual simultâneamente, humanos e máquinas em simbiose cada vez mais refinada. Às vezes, mídias diferentes se espelham e nós humanos somos usados como interfaces entre elas, como abelhas polinizando (obrigado Manuel de Landa via Kodwo Eshun) plantas de distintos recantos da floresta. Vi toda esta temporada do “Esquenta!” com o computador ligado para saber o que as pessoas (aquelas que antigamente eram classificadas de público passivo) comentavam sobre o programa (sou um de seus criadores). A conversa acontece quando o programa está no ar. Quase todas as nossas atrações, de Roberto Leal a MC Carol (aquela da vó que tá maluca), viraram Trending Topic mundial no Twitter. Diziam que a TV ia acabar por causa da internet. Mas se não fosse a TV, sobre o que as pessoas conversariam na internet? Ou a TV nos usa para conversar com a internet?

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Também escrevi aqui sobre a Dama do Bling. De lá para cá, descobri várias outras cantoras com nomes igualmente sensacionais. Lá vai uma lista de angolanas: Titica (há comentário no YouTube: “esta jovem era homem”); Tuga Agressiva; ou, minha preferida, Noite Dia, que já fez dueto com Puto Lilás.

nichos e multidões

08/04/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/04/2012

Deveria estar me preparando espiritualmente para comparecer à retrospectiva do Kraftwerk, que terá início terça-feira no MOMA de Nova York. Acredito que nunca um museu de tanta influência abriu as portas, de forma tão reverente, para uma banda de música pop. Banda? Música pop? A retrospectiva comprova que essa definição é apenas o início da verdade, ou sua embalagem mais conhecida. Já deveria ser evidente para todos que a obra do Kraftwerk é, antes de tudo, arte moderna. Seus componentes – incluindo o fundador Florian Schneider, que deixou a banda em 2008 – estão entre os artistas mais importantes do nosso tempo, determinando que tempo é este, como só o fizeram criadores muito especiais como Joseph Beuys, Robert Musil ou Fritz Lang, para ficar apenas em ambiente de língua alemã. Além dessas explicações “objetivas”, há o aspecto pessoal: o Kraftwerk faz os discos que mais amo, desde que ouvi “Autobahn” pela primeira vez em transmissão da Eldopop FM, aquele OVNI progressivo que enlouqueceu o dial carioca nos anos 70. Tudo que fiz depois foi consequência daquela audição.

Então fiz tudo para comprar ingressos para a retrospectiva, sem nem saber como me viraria para chegar no MOMA. A venda começou ao meio-dia na Quarta-Feira de Cinzas passada. Às 12 horas em ponto, entrei na fila virtual de compras. Seriam oito shows, um para cada disco desde “Autobahn”. Cada pessoa só conseguiria comprar dois ingressos. Ninguém poderá ver a retrospectiva completa. Sendo assim, com dó no coração, escolhi as apresentações – com imagens 3D – de “Trans-Europe Express” e “Computer World”. Estando em Nova York, pensei que iria ouvir “Trans-Europe Express” como se rezasse numa missa: afinal, sua faixa título, pirateada (ou apropriada, como diz o jargão dos curadores do MOMA) por Afrika Bambaataa, foi uma das pedras fundamentais do hip hop, cultura nascida na periferia daquela cidade. (Vou me repetir: fico sempre fascinado com a relação antropofágica entre a música negra do continente americano e as invenções sonoras alemãs: o hip hop apenas repetiu algo que já havia ocorrido com a polca no Século XIX, elemento básico na mistura que deu origem ao jazz, ao samba, ao tango etc.) “Computer World” foi escolhido por seu conteúdo profético totalmente cumprido, gravado antes da chegada dos primeiros PCs ou Macs ao mercado. O Kraftwerk já sabia que “it’s more fun to compute”, como todos nós acabamos descobrindo.

Divertido? Não foi nada divertido estar ali naquela fila virtual para comprar os ingressos. Um reloginho mudo na tela do meu computador me mandava ter paciência. A conexão com o site de vendas caiu várias vezes, mas outra mensagem robótica me dizia que meu lugar na fila continuava o mesmo – meu IP me identificava. Em paralelo eu checava o Twitter, onde “Kraftwerk” era trending topic mundial talvez pela primeira vez em sua carreira. O tempo passava e milhares de outras pessoas compartilhavam meu desespero. Alguns, bem-humorados, diziam que aquela espera seria já a performance, obra-prima eletrônica dos estúdios Kling Klang, que o Kraftwerk mantém em Dusseldorf. Passamos 1 hora e meia nessa situação ciberinfernal, até receber um comunicado com fundo vermelho dizendo que todos os shows estavam “sold-out”.

Imediatamente houve tsunami de fúria nas redes sociais. Mesmo funcionários do próprio MOMA escreveram contando que nenhum deles conseguiu comprar ingressos. No dia seguinte, o dono da empresa Showclix, que cuida da venda online de entradas para os eventos do museu, divulgou texto pedindo desculpas, revelando não ter se preparado para aquela procura. Um dado me impressionou: ele disse que havia ingressos apenas 1,2% das pessoas que entraram na fila ao meio-dia. Então eu fiquei entre os quase cabalísticos 99% (a base também do movimento Occupy Wall Street) de fora. E, se os computadores da Showclix trabalharam de forma ética, sem filas VIPs malocadas por baixo do pano virtual, devo ter perdido meus ingressos por questão de nanosegundos, pois entrei na fila meio-dia cravado.

Tenho certeza que o MOMA imaginava que haveria grande procura pelos ingressos. Porém, não levou em conta a nova realidade em que vivemos, quando o número de malucos fanáticos por qualquer coisa, capazes de fazer sacrifícios por seus ídolos a ponto de se programarem para estar na fila no instante em que ela abre, aumenta exponencialmente em escala global, não importa se é coisa “inteligente” como Kraftwerk ou fenômeno teen como o Justin Beeber. Isso deve ser boa notícia para artistas: de nichinho em nichinho forma-se uma multidão. Na internet há massa enorme para qualquer biscoito fino. É só saber encontrar e cultivar sua própria massa.

Outro sinal do Zeitgeist: o ingresso para cada show da retrospectiva custava 25 dólares, certamente um preço simbólico, de evento já pago por patrocinadores (nesse caso específico, como convém para artistas das autobahns alemãs, a Volkswagen). Estranho mundo das artes de elite, que não precisa mais do dinheiro do público, logo agora que o público cresceu assustadoramente, a ponto de haver muito mais demanda do que oferta para “eventos exclusivos”, já pagos de antemão. Mais sobre esse mistério Kraftwerk na próxima coluna.

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Sexta-Feira Santa. Amanhã é Sábado de Aleluia: quem nunca foi não deve perder a Benção do Fogo, início da Vigília Pascal (3-D à moda antiga, nada eletrônico), meia-noite, no Mosteiro de São Bento.

os vivos e os vídeos

09/04/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01/04/2011

Estou ainda obcecado com os “vivos” que invadiram esta coluna via José Miguel Wisnik. Para quem não se lembra, e radicalizando suas santas palavras: a cultura pré-digital seria basicamente o culto a mortos geniais; a cultura da internet aumentou “assustadoramente” o número de vivos. (E agora que me dou conta, brincando: os vivos também viraram fantasmas? Espectros do comunismo que ronda a internet? Derrida tinha razão?) Eu acrescentei, sorrateiro: a cultura pré-digital era fundamentada na escassez; a cultura da internet é o reino da abundância. Como é abundante! Não paro de encontrar gente viva, multidões de gente viva (gente boa e gente totalmente do mal), cada vez mais a cada link.

E não só a cada link. A revolução tecnológica (o filósofo francês Michel Serres já declarou: a era neolítica finalmente acabou…) não acontece apenas online. Nos anos 70, só grandes empresas podiam ter computadores. O computador pessoal ainda não tinha sido inventado pelos nossos heróicos hackers e doidões da Califórnia. Mas também: só as grandes empresas podiam ter câmeras de vídeo ou ilhas de edição de imagens (super-8 era ainda caro e delicado para ser encarado como uma real democratização da produção audiovisual). Acompanhei a chegada dos computadores e das produtoras independentes de vídeo no mercado “caseiro”. Sou da geração dos primeiros videomakers. Foi divertido, mas certamente não imaginávamos na época como a brincadeira ia ficar animada com a chegada de muito mais gente vivíssima, vinda de todos os lugares, mesmo das florestas.

No ano passado, a Vídeo Nas Aldeias, lá de sua central de Olinda, lançou uma coleção de DVDs chamada “Cineastas indígenas: um outro olhar” (que é acompanhada por um livreto precioso, para ser usado em escolas). É uma amostra do resultado do trabalho brilhante que Vincent Carelli e sua turma vêm fazendo há décadas por todo o Brasil, capacitando diferentes povos indígenas a produzir seus próprios vídeos, documentando suas diferentes culturas. São povos que muitas vezes foram decretados mortos, ou destinados a uma morte certa, e que hoje aparecem mais vivos do que nunca. Na coleção podemos ver os filmes dos povos Kuikuro, Huni Kuĩ, Panará, Xavante e Ashaninka.

Eu tinha uma relação romântica com os índios brasileiros. Valorizava sua tradição de não produzir “História”. Considerava todos os seus povos superiores justamente pelos motivos que os tornam inferiores para muitos outros olhares: aplaudia o fato de não terem deixado documentos ou monumentos, de poderem sair por aí sem deixar traços, vestígios, pegadas, de não terem tralhas pesadas para carregar, serem leves e soltos. Eram para mim como o Kraftwerk, banda que toca muito no estúdio, mas grava pouquíssimo. Seu componente Ralf Hutter já declarou: “Fitas são históricas. No momento em que você termina a gravação, elas se tornam históricas. Você termina com um excesso de história. Nós tentamos esquecer muito da música que tocamos.” E conclui: “Nós achamos que o mundo da música é muito orientado para a história, para as gravações. Nós queremos projetar uma atividade mais anárquica.”

Tudo bem, “aceito” de bom grado a mudança. Por que os índios deveriam permanecer para sempre assim, sem nenhuma “permanência”? Vamos ver como se saem jogando o “nosso” jogo, brincando com nossas manias, inundando o mundo com o registro de outros olhares. O que esses olhares registram é também mudança, produzida no contato com os olhares dos “brasileiros” sobre suas culturas, mediadas por novas tecnologias que também, aqui do lado não-indígena, não sabemos onde vão nos levar, ou mesmo se são registros como antigamente, ou se já se transformaram em outras atividades, elevadas pela potência de sua abundância.

Um índio huni kuĩ recomenda o modo correto para mostrar sua própria vida para a câmera: tem que ser verdadeiro, não é uma representação – “Se você ficar dando pulinho, não fica bom.” Outros índios se espantam com a mudança de espectativa dos “brancos”: antes queriam civilizá-los, agora “eles querem que a gente viva com nossos próprios costumes.” Os documentários poderiam produzir pajelança para turista. Mas não escondem nada. Ainda bem que eles sabem: não precisam ficar pelados para dizer que são índios. E são muito mais índios por estarem com uma câmera “branca” (e certamente não brasileira) na mão.

Os momentos que para mim são mais reveladores dos filmes são quando as câmeras saem das aldeias e filmam as cidades dos brancos. Como por exemplo aquele acampamento que Shomõtsi, índio ashaninka, monta na beira do rio, em frente da cidade, para esperar o avião que chegará com o dinheiro atrasado de sua aposentadoria. Numa das conversas, uma observação sobre o papel-moeda, que seria mais forte que o papel de escrever – este último, quando se molha, “desmancha como bolacha”. Ao ver os filmes passei o tempo inteiro observando esses detalhes, muitas vezes quase fora de quadro, como a garrafa térmica que vai para a caçada do índio panará. Ou a maneira sempre direta de se falar de sexo, na frente das crianças, sem inibição.

Além de filmar, os índios agora também gravam seus discos. Há música tradicional, e também pop xavante ou hip hop guarani (dos Brô MCs, de Dourados, MS). O Brasil tem cerca de 200 línguas. Imagine todas elas fazendo rap, acompanhadas por bateria eletrônica. Muita gente viva, com língua viva. Que riqueza.

minha (anti)ideologia

09/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/10/2010

Entre as várias declarações inesquecíveis de Andy Warhol, gosto de citar esta aqui: “Não estou tentando educar as pessoas para verem coisas ou sentirem coisas em minhas pinturas; não há nelas nenhuma forma de educação.” Gosto sobretudo por encarnar uma contradição pessoal: Warhol continua sendo um dos meus mais exigentes educadores, com lições que marcaram profundamente a maneira como vejo o mundo ou como quero que o mundo seja. Foi isso que redescobri com a leitura de “Andy Warhol – o Gênio do Pop” (tradução torta, mas não absurda, para “Pop – the genius of Andy Warhol”), livro imagino que recém-lançado no Brasil, encontrado numa mesa de saldos da Livraria da Travessa.

É uma biografia dos anos mais importantes da carreira de Warhol, praticamente toda a década de 60, da sua entrada para mundo das galerias até o tiro de Valerie Solanas. Foi escrita por dois jornalistas mais ligados ao universo da música, Tony Scherman e David Dalton. Um deles, Dalton, foi fundador da revista Rolling Stone. A crítica do New York Times resume minha desconfiança ao ler essas informações na orelha, e depois o meu alívio ao reconhecer que tinha feito uma boa compra, apesar de impulsiva: “A idéia de dois connoisseurs do rock trabalhando na enésima biografia de Warhol não soa muito sedutora, mas eles de fato escreveram um livro excelente, um trabalho de grande clareza e concisão que dá novo frescor para Warhol (e os críticos de rock).”

Esse frescor não vem apenas de fofocas bem pesquisadas, várias delas reunindo até então muito esparsas informações sobre a vida sexual do biografado, ele mesmo um fofoqueiro convicto (“Uma das coisa que sempre gostei de fazer é ouvir o que as pessoas pensam uma das outras – você aprende tanto sobre a pessoa que fala quanto sobre a pessoa que está sendo esculachada. Isso é chamado fofoca, claro, e é uma das minhas obsessões.”) Mas confesso que não sou o melhor juiz para medir o grau de novidade de mexericos do meio das artes plásticas norte-americanas. Não sabia nem que Robert Rauschenberg namorava com Jasper Johns, formando casal abençoado por John Cage. Vivendo e aprendendo.

Para além dos detalhes apimentados, o que mais me interessou na biografia foi a quantidade exuberante de informações sobre o processo criativo de Warhol, com minúcias sobre a gênese das idéias que estão na base da maior parte dos trabalhos produzidos nessa época, das latas de sopa Campbell’s aos shows com o Velvet Underground. Se, mesmo para o samba, idéia é que nem passarinho (“é de quem pegar primeiro”), no Pop o ambiente incentivava constante criação coletiva, e o esvaziamento glamuroso da noção de autoria. Tudo bem assumido, com humor e densidade filosófica: “Eu nunca fiquei envergonhado ao perguntar para alguém, literalmente, ‘O que devo pintar?’ porque o Pop vem de fora”.

O gesto de Marcel Duchamp, que ainda produziu objetos únicos, entrou para a linha de produção de massa. Fazer mais do mesmo, como uma máquina, ou deixar que os outros cuidem do artesanato de cada obra, virou motivo de orgulho: “Eu fiz 50 telas com Elvis em um único dia!” A mesma coisa dita com outras palavras: “Todo mundo pode fazer o que eu faço.” Tudo fora. Plástico, artificial, não-original. Nada dentro. Ele mesmo dava a fórmula: “Se você quiser saber alguma coisa sobre Andy Warhol, olhe apenas para a superfície de meus quadros e filmes e de mim mesmo – e ali estou. Não há nada atrás disso.” No vazio, pop-zen, e no gosto pelas coisas do mundo (“tudo é bonitinho”) está a salvação. “Se eu vou me sentar e ver a mesma coisa que vi ontem, não quero que ela seja essencialmente a mesma – quero que seja exatamente a mesma. Quanto mais você olha para a mesma exata coisa, mais o sentido vai embora, e você se sente melhor e mais vazio.”

A estratégia de Warhol foi tão inteligente, e tão profissional, que a arte depois da Factory tem que partir de onde ele nos deixou, desamparados e iluminados no grande supermercado da vida, transformada num grande vazio, renovador da possibilidade de crítica. Qualquer ação artística que não leve esse golpe em consideração vira tentativa ingênua e burra de restauração de uma ordem caduca ou simplesmente fascista. Sempre considerei Warhol de esquerda, da melhor esquerda. Como lembra um componente do coletivo russo Chto Delat?: a pergunta da direita é “quem é o culpado?”, a da esquerda é “que fazer?”. O Pop, em seu momento de maior genialidade, era um plano de ação para um mundo sem nenhuma ilusão, sem boba “interioridade”, sem culpados (porque sem Culpa).

Fiquei animado ao reler essas coisas, parte essencial de minha (anti)doutrina, no meio desse tiroteio religioso-eleitoral, sob o qual o Rio vive um momento privilegiado em termos de exposições, com a série Apocalipse de Keith Haring (o melhor discípulo de Warhol junto com o Kraftwerk?) e William Burroughs (Warhol declarou querer viver dentro de uma cena de Naked Lunch) exposta até novembro, em algum lugar do Centro (a Caixa Cultural) entre o buraco na rede de pingue-pongue de Waltércio Caldas, os aviões-árvores de Nuno Ramos, as araras arrancadas da Tropicália de Hélio Oiticica (nunca mais penetraremos na obra completa?), o Islã do CCBB e qualquer mídia dos 2 RochaPittas. Muita coisa para fazer, e fazer novamente, para nos inspirar no dia da votação.