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diretor artístico

18/01/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/01/2014

O programa Navegador – que apresento na Globo News com Alê Youssef, José Marcelo Zacchi e Ronaldo Lemos – é a celebração de atividade que parece condenada à extinção com o predomínio de redes sociais e apps fechadas: gostamos de passear livremente pela velha internet, numa errância de um assunto/site para outro, sem saber onde vamos parar. Incentivamos que outras pessoas façam o mesmo. Por isso deixamos disponíveis todos os links comentados, para serem pontos de partidas de outras viagens. A quantidade frenética de tópicos diferentes é intencional. Não queremos esgotar cada tema, mas sim dar início a muitas e diversas conversas paralelas, que podem acontecer em qualquer lugar, inclusive nesta coluna. Por exemplo: quero retomar aqui o que falei sobre Nicola Formichetti, mais conhecido como o stylist da Lady Gaga, na edição do Navegador que pode ser vista neste link.

O pano de fundo para minha decisão de trazer seu nome à baila (prefiro usar “à baila” do que “à balha”, pois lembra mais uma dança do pensamento) era o debate, que fez algum sucesso em 2013, sobre o uso da Lei Rouanet para a captação de recursos para desfiles de moda. Nada contra a vontade geral de tornar mais claros os limites para o uso de dinheiro incentivado. Porém, muitos comentários raivosos entraram em terreno perigoso ao colocar a dúvida: moda é cultura? Ou ainda: moda é cultura relevante?

Achava que isso era polêmica de passado remoto. Não consigo pensar o melhor ou mais radical da cultura do Século XX sem incluir na lista de artistas megaimportantes nomes como Vivienne Westwood, Yohji Yamamoto ou Rei Kawakubo (da Comme des Garçons). Estou sendo até conservador, indo no correto, citando os trabalhos aceitos em meios intelectuais ou da Grande Arte. Yamamoto já foi centro de documentário de Win Wenders, honra só obtida por Pina Bausch e Nicholas Ray. Kawakubo e Westwood têm verbetes na The Heilbrunn Timeline of Art History do museu Metropolitan de Nova York. Outras pessoas são mais liberais. Veja o que o pintor Julian Schnabel escreveu sobre Azzedine Alaïa na última Art Issue da revista Interview: “é um escultor que desenha com tesouras.”

Nichola Formichetti é um passo além. Ele não é nem um estilista, mas um “stylist”. Não sei se há termo em português para diferenciar os dois trabalhos. O estilista cria as roupas, inventa os conceitos para as coleções. O “stylist” até bem pouco tempo parecia ocupar uma posição secundária, combinando peças e acessórios para sessões de fotografias ou desfiles. Não mais, talvez sinal dos tempos em que curadores (os que juntam as criações dos outros) são tão criativos quanto os criadores “de primeira instância” (podemos discutir, em outro momento, se há mesmo essa primeira instância já que a arte contemporânea tem sido, há tempos, um jogo – severo ou lúdico, tanto faz – de citações).

Filho de pai piloto de avião italiano e mãe aeromoça japonesa, Formichetti foi criado na ponte aérea Roma-Tóquio. Depois estudou arquitetura em Londres, mas abriu lojas de roupas “alternativas” e logo começou a trabalhar como stylist nos editoriais de moda da revista Dazed and Confused, onde teve carreira meteórica chegando a ser diretor criativo. Seu encontro com Lady Gaga, que tem faro aguçado para se cercar de pessoas talentosas (assim como Grace Jones com Chris Blackwell e Jean-Paul Goude nos anos 1980), deu visibilidade para suas ideias fora do mundo das revistas de moda britânicas. Tudo com estética do choque em mundo onde nada mais choca. Vide aquele vestido de carne usado por Gaga em alguma dessas milhares de cerimônias de entrega de prêmios de música.

Hoje Formichetti é uma das pessoas mais poderosas também no mundo das artes. Ele ocupa o cargo de diretor criativo (como observou José Marcelo Zacchi: que denominação espetacular essa de “diretor criativo”) da Diesel, marca italiana de jeans. Lá criou a campanha Reboot, que tem sua base na rede social Tumblr e trata a internet como a nova rua, de onde são pinçadas as novas tendências. Antes os adolescentes se mostravam nas calçadas da King’s Road. Agora tiram fotos no espelho do quarto. Formichetti transformou a campanha da Diesel em exposição virtual, apresentando novos talentos.

O virtual vai para o real e vice-versa. Uma das descobertas da Reboot, o fotógrafo Michael Mayren (que ficou famoso com retratos de adolescentes ensanguentados em lutas de box), fez exposição na vitrine da Diesel de Convent Garden, tudo bancado também pela Serpentine Gallery do curador não menos poderoso Hans-Ulrich Obrist. Moda? Arte? Promiscuidade? Relativismo? Coloquem a culpa na modernidade, essa menina sem noção e sem aura.

nova cibercultura infantil

24/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/06/2010

 

Há um mês, nunca tinha ouvido falar de Greyson Chance. Eu, a torcida do Flamengo, o planeta inteiro. Tudo bem: sua família e o pessoal da escola, na cidade de Edmond, Oklahoma, já deviam ter notado seu talento. Hoje, tudo mudou. Se você passou as últimas semanas praticando ecoterrorismo no planeta Pandora, talvez não saiba do que falo. Vou resumir. No dia 28 de abril foi publicado um vídeo no YouTube documentando a apresentação de Greyson, 12 anos, sexto ano, tocando piano e cantando Paparazzi da Lady Gaga em show do colégio. O vídeo é precário, mas o som é suspeitamente bom – dá para ouvir que o garoto canta bem. No dia 11 de maio, quando Ellen DeGeneris, apresentadora de TV, viu o vídeo (seguindo, diz a lenda, recomendação de email enviado para sua produção pelo irmão de Greyson), sua performance ainda era modesta: cerca de 10 mil pageviews. 24 horas depois, o menino já tinha feito sua primeira viagem de avião e gravava entrevista para o Ellen Show, interrompida por telefonema da própria Lady Gaga, super-afetuosa, mesmo diante de uso não-autorizado de sua música. Daí para frente a reação-celebridade-instantânea foi explosiva: atualmente são mais de 30 milhões de pageviews só no YouTube – e outros vídeos, com composições próprias, vão pelo mesmo caminho. Depois de boatos de um contrato com a Interscope (gravadora de Lady Gaga), Ellen DeGeneris anunciou a criação de seu próprio selo fonográfico que terá como primeiro lançamento o disco de Greyson Chance.

 

Chance. Gosto desse sobrenome. Sou fã de um outro cantor, bem menos fofo, chamado James Chance, que gravou, entre outras pérolas, a sintomática I Don’t Want to Be Happy. Chance significa acaso. Mas o que há realmente de acaso na história de Greyson Chance? Isso importa? Ainda sabemos distinguir o espontâneo do fabricado, a autenticidade da manipulação? A distinção tem alguma utilidade? Mesmo se tudo fosse espontaneamente autêntico, não poderíamos, sem simplificação brutal ou ingenuidade, entender esse sucesso como comprovação da vitória das novas mídias contra a coitadinha da mídia tradicional. Para começar: a ascensão está baseada num cover de Lady Gaga, ela fenômeno de massas que é resultado de uma campanha de marketing violentíssima produzida pela velha indústria. No ano passado, eu moderei o blog do Vem Com Tudo, quadro do Fantástico – comandado por Regina Casé – que parodiava a tendência dos caçadores de tendências, e era bombardeado por comentários irritantes de supostos fãs da Lady Gaga, que pareciam todos pagos para ser fãs (mas que acabaram produzindo fãs verdadeiros…) O vídeo de Greyson Chance estava no YouTube, mas foi só depois de aparecer na TV, ultimamente sempre diagnosticada como “sem salvação” (justamente por causa do YouTube), que virou fenômeno viral. E assim por diante, revelando uma tabelinha caprichada – talvez por acaso – entre o centralizado e o descentralizado, o broadcast e o de-muitos-para-muitos.

 

Acho que gosto também de Greyson Chance. Ele precisa controlar um tique nervoso que o faz balançar o cabelo pós-emo de forma sutil mas levemente inquietante. Precisa também ser menos natural em suas aparições públicas. Fico desconfiado de gente de 12 anos que se sente tão em casa dando entrevista em auditório de TV, como se tivesse estudado para isso com um batalhão de assessores de políticos. A maioria dos pré-adolescentes que conheço só tem dois vocábulos: parada e caraca. Greyson não: Lady Gaga “é uma grande inspiração pois amo sua individualidade e a maneira com que ela atrela isso ao seu talento.” Wow! Parece que ele estava se preparando para ser a capa da Caras por toda a vida. Mas tem gente que é naturalmente assim. Como o Justin Bieber

 

Justamente: Greyson tem sido chamado do novo Justin Bieber. A comparação me encantou: era a web se referindo à própria web, o mundo novo ancorado na sua novidade, sem precisar do tal mundo real. Claro: a comparação poderia ser feita com personagens mais, na falta de palavra melhor, concretas. Greyson seria o novo irmão dos Jonas, a nova Miley Cirus, o novo aluno da escola de High School Musical, de Glee ou da turma de Isa TKM. Estaria sempre em milionária companhia: se tem alguma coisa que a mídia centralizada/tradicional/velha ainda faz muito bem é produzir esses fenômenos de consumo quase infantis, totalmente multimidias. Compre o DVD, o álbum de figurinhas, a roupa, a pasta de dente, o biscoito, a boneca etc. etc. – e pense que sua vida depende disso, desse comprar desvairado, dessa necessidade padronizada, dessa emoção tão nanofabricada.

 

Não acreditava tanto na potência poética desses produtos até que fui obrigado a levar minhas sobrinhas ao show de despedida do Rebelde. De repente me vi no meio de um mar de meninas que choravam sem parar, totalmente desamparadas, perdidas, sozinhas no mundo, como se estivessem num funeral, como se aquela fosse uma escola de educação sentimental, no curso “como lidar com a Perda”. Fui tomado por uma tristeza absoluta, metafísica, a mesma que despedaçou meu coração quando vi Tristão e Isolda pela primeira vez. Só que a ópera não estava no palco, e sim na platéia. Que importa se o ponto de partida daquela emoção coletiva tão fulminante é a rapa-de-tacho de uma aventura comercialesca mexicana? Poucas vezes na vida presenciei algo tão intenso. Essa criançada pós-virtual e esses marqueteiros estão brincando com fogo, fogo muito provavelmente sagrado.