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mais imigrantes

24/05/2020

Tony Njoku acaba de publicar o video de sua nova música 100% 4 Beauty. É mesmo uma beleza. Segue o padrão dos vídeos anteriores, quase sempre só seu corpo em cena, com dança desconcertante. Agora com um casaco que brilha mais que sol (More brilliant than than Sun, o livro brilhante de Kodwo Eshun que parece que vai ser finalmente relançado em breve). E a letra termina assim: “a beleza é minha salvação / a beleza é minha convicção / a beleza é minha proteção”. Reza. Profissão de fé desesperada em época horrível.

Sua voz é também uma beleza. Já uma das minhas vozes inglesas preferidas, junto com a de Michael Kiwanuka, meu herói. Posso escutar seu disco Kiwanuka sem parar. Beleza pura (tente não chorar com esta e esta outra).

Repare nos sobrenomes. Njoku, Nigéria. Kiwanuka, Uganda. Já escrevi neste blog sobre a explosão de criatividade que filhos de imigrantes africanos desencadeiam na cultura contemporânea dos Estados Unidos. Citei quatro nomes como prova: Chimamanda Nogzi Adichie, Teju Cole, Nnedi Okorafor e Chino Amobi. Agora estou aqui para saudar o mesmo fenômeno no Reino Unido.

Não só Tony Njoku e Michael Kiwanuka. Pense nas grandes estrelas do grime, estilo que deixou a periferia para ocupar o centro da indústria musical do país do Brexit. O nome completo do premiadíssimo Stormzy, principal atração do palco principal do festival Glastonbury no ano passado, é Michael Ebenazer Kwadjo Omari Owuo Jr. Skepta se chama Joseph Junior Adenuga. Dizzee Rascal é Dylan Kwabena Mills no passaporte (que usou para vir tocar no Tim Festival). E assim por diante, sem parar. Como pensar o melhor da identidade britânica sem esses nomes de famílias africanas?

Aproveito para mandar um salve também para o enraizamento do grime no Brasil. Tomara que apareçam logo colaborações com imigrantes africanos, e de outras procedências, que desembarcaram por aqui em tempos recentes.

Em resumo: como canta Michael Kiwanuka: você não é o problema.

ainda imigração

14/04/2018

Agora falando sério: ninguém mais pode pensar com alguma propriedade sobre imigração no mundo sem ver a aula inaugural de François Héran para a nova cátedra Migração e Sociedade do Collège de France, proferida agora dia 5 de abril. É uma verdadeira lição, que coloca os pingos nos is, com muitos números, neste assunto ocupado por preconceitos e fake news. Fiquei pausando o vídeo o tempo todo, anotando informações surpreendentes, com as quais tinha contato pela primeira vez. No final um puxão de orelhas em Michel Foucault (comentei sobre seus maravilhosos cursos no mesmo Collège de France aqui): em defesa da boa estatística, Héran declara: “não é para dominar que o Estado deve contar, é para prestar contas.” Claro: poucos Estados contam bem ou prestam contas bem. Faltam muitos Hérans por aí. Por isso é bom aproveitar quando aparecem e nos transmitem seus ensinamentos.

Primeira surpresa: descobrir que só há, oficialmente, 3,4% de imigrantes internacionais no mundo. O número mais comumente apresentado – para dizer que vivemos crise migratória como nunca antes na história da humanidade – é 257,7 milhões de pessoas, muito mais impressionante. Mas quando vamos para a porcentagem com relação ao total da população do planeta, mesmo arrendondando para 5% (contando provável imigração não declarada), aprendemos que 95% dos humanos vivos nunca migraram para fora de seus países. Quando visitamos as chinatowns espalhadas por várias continentes calculamos implicitamente que a diáspora chinesa é enorme; mas fazendo as contas só 0,7% dos chineses nativos vivem fora da China. São poucos os países de muitos milhões de habitantes com mais 1% de sua população nativa vivendo fora de suas fronteiras (a porcentagem de brasileiros fora do Brasil também é de 0,7%). Como disse Adam Smith, citado por Héran, e processado por meu remix: “o homem é a bagagem mais difícil de ser transportada.”

Continuando a ser surpreendido: refugiados e gente que sai de seu país procurando emprego são minoria nessas já pequenas porcentagens. Por exemplo: na França são admitidos oficialmente cerca de 200 mil imigrantes por ano (mas isso não representa 1/4 do seu aumento populacional anual). Desse número, 50 mil ganham o direito de morar em solo francês por ter casado com franceses, 35 mil usando o direito internacional de viver com sua família, 60 mil usando o direito de estudar no estrangeiro. Só 18 mil usam direito de asilo… Números que produzem um quadro bem diferente daquele divulgado por alarmistas. Tudo isso, Héran enumera para combater a opção a favor/contra a imigração. Não há alternativa: temos que ir “com” a imigração.

Sendo assim, pós choque de realidade dos números e das contas, volto ao meu ponto de partida nesta série de posts. Diante do número pequeno de imigrantes com relação ao total da população mundial (e dos 95% que nunca migraram), chama mais atenção ainda encontrar vários deles entre os artistas/pensadores/inovadores mais influentes de nossa época (e – número importante para o contextualizar o assunto dos posts anteriores – a “diáspora” nigeriana soma apenas 0,6% da população nativa da Nigéria). Talvez a condição de migrante, entre dois ou vários mundos culturais, tenha a ver com necessidade de criatividade, para sobrevivência. Claro, não estou aqui para diminuir a tragédia que acompanha muitas migrações forçadas ou não. Mas como temos que seguir em frente “com” imigrantes, vale mais encontrar renovadas maneiras de bem acolhê-los, criando terreno fértil para que possam inventar também bons futuros – aqueles bons futuros, entre outros, que sem imigrar não podemos imaginar quais sejam – para nossas culturas.

PS: Outra citação, provavelmente muito conhecida (mas minha formação filosófica é bem precária, por isso estou sempre descobrindo o óbvio), de Rousseau, que vai aqui sem explicações para sua ressonância com o momento em que vivemos: “Mesmo a dominação é servil quando conectada com a opinião, pois você depende dos preconceitos daqueles que você governa com preconceitos.” Com a ajuda do Google cheguei a um complemento curioso: “Para comandá-los como é do seu agrado, você tem que se comportar como é do agrado deles.”

imigrantes

04/04/2018

Prova recente dos benefícios da imigração para a inovação cultural: o número crescente de filhos de imigrantes nigerianos que já se tornaram criadores centrais no mundo das artes dos EUA. O nome de Chimamanda Ngozi Adichie é talvez o mais conhecido desta turma poderosa. Ela já recebeu até aquela bolsa para gênios da Fundação MacArthur, além de ter feito discurso feminista em hit da Beyoncé. Mas há muito mais gente de mesma situação étnica-social-transgeográfica começando a ocupar a lista dos artistas americanos mais influentes do momento. Estou aqui para falar de Nnedi Okorafor e Chino Amobi. (Informação adicional: os três – Chimamanda, Nnedi e Chino – têm pais, além de nigerianos, da etnia igbo. Mas lembro agora de um quarto nome, não menos influente, o do escritor Teju Cole, que é iorubá.)

Acabo de ler a trilogia Binti, de Nnedi Okorafor. O terceiro livro foi lançado em janeiro. São todos curtinhos. Tanto que o primeiro ganhou os prêmios Hugo e Nebula – para quem não sabe: os mais importantes da ficção científica – para “novellas”. Podem portanto ser lidos de enfiada, com fiz com enorme prazer. Minhas últimas leituras de FC tinham sido os calhamaços de Kim Stanley Robinson, a trilogia do “problema dos três corpos” de Cixin Liu, e o “Seveneves” de Neil Stephenson, todos extraordinários, mas que fundiram meus miolos com doses cavalares de ciência duríssima, de mecânica orbital a genética aplicada. Há essa tendência na FC do século XXI (um pouco menos em Cixin Liu) de só escrever sobre o que pode realmente acontecer respeitando todas as leis científicas. As viagens demoram séculos, a gravidade dentro das naves não pode ser fruto de um passe de mágica etc. Então foi ótimo e relaxante reencontrar a magia (ainda mais com base panafricana) do tudo é possível em Nnedi Okorafor. Mesmo com as questões que levam a personagem Binti, garota fascinante, a primeira de seu povo a viajar pela galáxia, a viver a maior crise de identidade de todos os tempos, consequência de violentas mestiçagens alienígenas.

Importante ver uma mulher negra, com base cultural tão africana, se tornar um dos principais escritores de FC de agora. Nnedi não nasceu nerd, não lia FC na adolescência. Mas nas férias com os pais na Nigéria dos anos 1990 descobriu uma Africa tecnológica (celulares nas aldeias remotas etc.) que não estava retratada em literatura alguma. Escrever FC foi o atalho que encontrou para pensar/debater essa realidade. Deu certo. Hoje não para de trabalhar. Atrai convites os mais variados e impressionantes. George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, está produzindo uma série baseada em “Quem teme a morte“, um dos primeiros sucessos de Nnedi, para a HBO. Ela também já escreveu para a franquia “Guerra nas estrelas” e vai publicar uma história em quadrinhos com o Pantera Negra. Todo mundo quer tirar uma casquinha de sua imaginação pós-imigrante de discípula africana de Octavia Butler.

Chino Amobi também é fã de Octavia Butler. Sua música pode ser ouvida como, entre muitas outras possibilidades, FC. Seu primeiro álbum, Paradiso (o inferno de Dante e o gótico de Edgar Allan Poe em forma de muito barulho bom), foi eleito o melhor lançamento do ano passado pelo time de críticos reunido pela revista The Wire, a publicação mais importante para quem se interessa pelo futuro da música, ou pelo lado mais experimental da arte dos sons. Isso garante influência por décadas a seguir. Além de cuidar de seu próprio trabalho, Chino é um dos três afropolitas fundadores da NON Worldwide, república resistente tipo a Kalakuta do Fela Kuti, mas sem sede física, movimento virtual com ações concretas (em pistas de dança, museus, galerias etc.) que fortalece as carreiras e batalhas de novos criadores da diáspora africana. Foi através da NON que entrei em contato, por exemplo, com a dupla FAKA (uma delas se chama Fela Gucci), arte transtudo da África do Sul.

Tudo animador, revigorante. Isso se junta às novidades constantes da filosofia africana, também migrantes, desterritorializantes. Imagine o que o mundo estaria perdendo se a imigração fosse realmente proibida, e todos os países vivessem cercados por “walls”.