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Jorge Caldeira

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/10/2010

Jorge Amado, escrevendo sobre o lançamento de “Casa-grande e senzala”, não economizou o tom bombástico: “Foi uma explosão […] Quem não viveu aquele tempo não pode imaginar a sua beleza […] o livro de Gilberto deslumbrava o país, falava-se dele como nunca se falara antes de outros livros.” Monteiro Lobato foi até mais apoteótico: “qual o Cometa de Halley, irrompera nos céus da nossa literatura…” Diante desses comentários, fiquei com inveja. Não me lembro, desde que me tornei devorador de livros, de um lançamento sobre o Brasil que tivesse gerado tal deslumbramento. Ou mesmo que tivesse provocado apenas em mim surpresa capaz de desnortear minha visão de país, propondo uma maneira realmente nova de pensar nosso lugar no mundo.

Talvez os livros, não apenas quando falam do Brasil, tenham perdido esse poder. Games e softwares ganharam corações e mentes, de forma contundente, apesar de pouco analisada, e sem produção nacional de peso. Por exemplo: Halo:Reach, game recém-lançado, vendeu 200 milhões de dólares no primeiro dia, em todo o planeta. Isso é que é um cometa de Halley mercadológico, que irrompe nos céus da consciência contemporânea fora do radar da crítica artística, sem deslumbrar figurões da literatura de país algum. Porém, mesmo com essa competição “desleal” de outros estímulos culturais, provavelmente o verdadeiro problema não seja somente mídia (game ou livro), mas também o tal “conteúdo” (o “Brasil”, o “nacional”), e assim – abruptamente – a ausência desses livros em nossa vida atual fica bem explicada, ou eternamente sem explicação.

Então – quando eu já estava conformado, jogando “Little big planet” – surge o “História do Brasil com empreendedores”, de Jorge Caldeira. Terminei a  leitura há meses. Tentei fazer pouco caso, ou abafar meu espanto. Claro que ouvia elogios, mas todos meio “blasés”, ou distanciados, como se proferidos por personagens do Dolce Vita de Fellini, naquela festa final, quando – diante do oferecimento de um strip-tease – alguém diz: “Não novamente, todo mundo já viu você nua.” Prudente, fiquei esperando a contestação de algum historiador, metralhando dados para provar que o que Caldeira diz está errado. Nada, até agora. Isso quer dizer que todo mundo aceitou a nova interpretação do Brasil? Ou ninguém leu direito, ou deu importância ao que leu?

Estranhíssima situação. No meu pensamento, as teses de Caldeira foram – como naquela música do Peninha“crescendo, crescendo, me absorvendo e de repente eu me vi completamente” delas, tomado pelo livro. E tenho que confessar: o Brasil deixou de ser o mesmo país em que eu vivia antes da leitura. Não é exagero: se vamos, a partir de agora, levar a sério o que está escrito em suas páginas, mesmo os livros didáticos precisam ser reescritos. Nas escolas, aprendemos que a economia colonial brasileira não se desenvolveu pois tudo que era produzido aqui ia para Portugal. Caldeira revela um outro início de país, com mercado interno mais dinâmico que o da metrópole, com vida rica fora da casa-grande e da senzala. Somos ensinados, desde criancinhas nas primeiras aulas de História, a pensar uma colônia apenas com senhores e escravos. “História do Brasil com empreendedores” fala de uma terra que tinha, na pior das hipóteses, mais de dois terços da população composta por homens livres. Meu espanto: como os outros livros nos “esconderam” essa gente toda, esse tempo todo? E o que fazer, a partir de agora, com o aparecimento dessa “nova” e decisiva população?

Como se isso não bastasse, Caldeira ainda lança várias outras idéias que para mim são alegremente pertubadoras, e exigem revisão cuidadosa de várias de crenças anteriores. Com Gilberto Freyre, eu imaginava que a mestiçagem brasileira tivesse origem ibérica, talvez árabe. Vários bons momentos de “História do Brasil com empreendedores” viram essa idéia pelo seu avesso “perspectivista”: nossos índios se tornam os “miscigenadores” mais radicais e obstinados. Certa vez, em entrevista, Aílton Krenak me disse que os índios não tinham lugar em “Casa-grande e senzala” – eram os que ficavam fora, à espreita, prontos para o ataque. Para Caldeira, o ataque já aconteceu, na surdina, mudando os corpos de senhores e escravos, sem que eles percebessem ou escrevessem sobre isso em seus livros de História, ou contra-História.

Fui procurar outros livros de Caldeira. Dei sorte de encontrar um exemplar da edição esgotada de “A construção do samba”, que reúne ensaios dos anos 1980. Incrível não ter conhecido esses textos antes de ter escrito o meu “O mistério do samba”, com tantas preocupações em comum. Foi interessante reencontrar Donga, que agora pode ser “lido” como um empreendedor, inventor de um “negócio”, o da música popular no Brasil, entre o “mercado” e a autenticidade, entre a “roda” e o consumo de massa. Na perspectiva de Caldeira, o sambista – como o trabalhador livre da colônia – deixa de ser apenas o excluído, para se tornar também – ao mesmo tempo – agente de sua própria história, mesmo de forma informal.

A informalidade, “o fio do bigode” e o favor acabam se tornando os maiores inimigos dos empreendedores. O crescimento da periferia – ainda que exuberante – fica contido, à margem. Com metade da sua força de trabalho na informalidade, o Brasil precisa enfrentar esse problema mais que central. Pense nisso, antes de votar no domingo.

radicalizar Gilberto Freyre

31/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13-08-2010

Recebi os convites ao mesmo tempo: para  escrever esta coluna semanal e para participar da homenagem a Gilberto Freyre na Flip 2010. Pensei que era ótima oportunidade de – como dizia a Nardja Zulpério, saudosa personagem teatral interpretada por Regina Casé, citando no palco a maneira neoconcreta de falar da “empregada do Guel” – “matar dois coelhos com uma caixa d’água só”. Gilberto (é assim que seus estudiosos o chamam, apenas com a intimidade do primeiro nome) sempre funcionou em minha vida como uma enorme caixa d’água, onde em momentos cruciais encontrei substância de sobra para matar a sede de inspiração, geralmente na antropologia. Minha tese de doutorado, sobre o mistério do samba, girava em torno de seu encontro com Pixinguinha e de seu elogio da mestiçagem. Mas agora estava à procura de um outro Gilberto, aquele que tinha escrito nos jornais, com frequencia espantosa, durante quase sete décadas de sua vida, desde a adolescência até seus 87 anos. Como ele conseguiu, no meio de tantos outros afazeres e com tal desenvoltura, realizar tal façanha? Haveria algum truque para a longevidade, e contra de falta de assunto (paranoia de toda coluna), periodista?

O contato com seus artigos de jornal está hoje facilitado pelo trabalho generosíssimo da Biblioteca Virtual Gilberto Freyre, que já tornou disponível via internet uma quantidade enorme de textos que eram impossíveis de serem encontrados sem viagens para várias bibliotecas físicas, aquelas do antigo mundo real, sobretudo as localizadas em Pernambuco. Na web, é rapidinho (imagino que Gilberto adoraria essa gíria que transforma nossa pressa obsessiva atual em atividade carinhosamente diminutiva) fazer pesquisas por palavras, identificando cruzamentos entre escritos de épocas diferentes e revelando como determinadas idéias se mantiveram constantes no decorrer de sua carreira.

Que o leitor/pesquisador não se engane. As idéias fixas de Gilberto não dão nenhuma monotonia para a leitura de seus artigos. Pelo contrário: elas são o motor gerador de surpresas, paradoxos, mudanças, contradições. O autor de Casa Grande e Senzala fugia dos sistemas fechados e das conclusões óbvias como um vampiro – não os sanguinariamente corretos da saga Crepúsculo – foge da cruz. Seus livros nunca apresentam capítulos conclusivos, ou teses acabadas e definitivas. Casa Grande e Senzala, que muitas vezes foi criticado – por quem não se concedeu o prazer de sua leitura – como a descrição de um paraíso tropical, termina de repente, de forma abrupta, com a enumeração de dezenas de doenças e verminoses que infernizavam a vida dos negros no Brasil. Isso não era uma saída fácil, em cima do muro ou para chocar a audiência. Era uma determinação metodológica, única forma de poder pensar – sem leviandade – o que há de difícil e complexo na cultura, sobretudo em terras tropicais.

Muita gente falava que Casa Grande e Senzala teria inventado o mito da democracia racial. Reli o livro, com atenção redobrada, e não encontrei a expressão “democracia racial” em nenhuma de suas páginas. Agora, sem esse alvo fácil,  todo mundo ataca a idéia, essa sim tipicamente freyreana, de “equilíbrio de antagonismos” quase como se fosse sinônimo de “democracia racial”. Nada pode estar mais longe do pensamento de Gilberto: equilíbrio não seria resolução ou fusão dos antagonismos. A tendência para o equilíbrio vive em luta constante com várias tendências antagônicas. Sem trégua, sem final feliz, sem conclusão. Gilberto é “mal-resolvido” sim: por convicção, pois não existe resolução útil para os problemas que quis estudar. A realidade é que é mal-resolvidíssima.

A defesa constante do contraditório, do diverso, do não definido e do inconcluso está presente nos textos de Gilberto desde os seus primeiros artigos de jornal, enunciadas de forma muitas vezes deliciosamente petulante, e sempre com estilo impecável e esperto. Escrevendo sobre o livro História da Civilização, de seu mentor Oliveira Lima, Gilberto não se intimida e anuncia as bases bem-humoradas e movediças de seu projeto intelectual, de poligamia com muitas maneiras de ver/viver a vida: “Há no livro do Sr. Oliveira espantosas afirmativas em tom categórico. São poucas felizmente. […] As opiniões definitivas… É perigoso ter opiniões definitivas. Perigoso, porém fácil. É mais fácil formar uma opinião que fazer um laço na gravata. […] A verdade anda sempre de Paris. É rebelde à monogamia.”

Sábio e saboroso conselho para um principiante colunista. A tentação de ter opiniões definitivas, de preferência indignadas (como disse uma vez Contardo Calligaris: a indignação é a forma mais barata de inteligência…), são estupidamente fáceis, e fazem tanto sucesso… O complexo, muitas vezes, é impopular, não levanta as massas, não parece lógico… Gilberto não tinha simpatia pela lógica, descrita como “gelo resvaladio sobre cuja superfície não ouso patinar” (Diário de Pernambuco, 03-08-1924, ainda não digitalizado pela Biblioteca Virtual Gilberto Freyre). Citei tudo isso na minha fala na Flip. Lancei um desafio: vamos radicalizar Gilberto? Sim, o “elogio da mestiçagem” foi usado muitas vezes para negar o racismo existente no Brasil. Precisamos desconectar esse orgulho de ser mestiço de tudo que há de reacionário em seu passado, transformando-o em nossa arma mais poderosa, radical e original de combate ao racismo. Para começar: reler Gilberto. Com outros olhos, sem preconceitos. Como opiniões sempre renovadas, sem conclusões.

ver também: ainda Giberto Freyre – “a vidas às claras”