texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 10/08/2012
Caetano Veloso, aqui neste nosso cantinho do Segundo Caderno, escreveu: “Quinze anos é a minha idade. Talvez 14. O resto são marcos exteriores que não me dizem respeito”. Então só me resta felicitá-lo por, três dias atrás, ter permanecido com quinze anos, talvez 14. Minha coluna já comemorou os 70 anos de Peter Fry e Gilberto Gil. Como sempre diz Regina Casé: festa boa tem que ter gente de várias idades, tons de pele, orientações sexuais, religiosas etc. Então é bom, para variar, dar meus parabéns para um novinho. Fui apresentado para Caetano, no início da década de 1980, por Arto Lindsay (na base de nossa amizade está o noise). Fazendo as contas, acompanho de perto sua adolescência há quase 30 anos. Fizemos juntos algumas travessuras juvenis neste tempo que para/não-para nos 15-talvez-14 (copiando Caetano: o verbo parar conjugado na terceira pessoa do singular no presente do indicativo deveria continuar com acento diferencial talvez para sempre).
Uma boa aventura foi minha campanha para ter seu “O cinema falado” lançado em DVD. Com Carlos Nader, cuidamos dos extras, mais falantes ainda. Quem convive com Caetano em casa conhece bem um de seus dons: é excelente professor, capaz de explicar de forma clara os temas mais complexos (apesar de sua pouca idade, é menino bem sabido). Já aprendi muito em conversas que se tornaram serões. Nunca vou me esquecer da noite em que ele explicou tintim por tintim o “O que é a filosofia?”, de Deleuze e Guattari, livro que – mesmo já tendo estudado o “Anti-Édipo” e o “Mil Platôs” – eu considerava impenetrável.
A intenção, com vários extras do “Cinema falado”, era aumentar o número de seus alunos. Por exemplo: na leitura de Thomas Mann, interrompida por comentários de uma profundidade divertida, penso que conseguimos captar o espírito ao mesmo tempo caseiro e rigoroso das aulas particulares do mestre Caetano. Pena: acho que pouca gente viu o que fizemos. (Não acredite no mito que diz que todo mundo presta atenção exagerada em tudo que Caetano faz. Não dê ouvidos também a quem diz que todo mundo só fala bem dele. Desde que comecei a ler cadernos culturais, encontro muita gente que quer brilhar escrevendo contra Caetano.) Parodiando o professor que uma vez cantou “quem lê tanta notícia?”, posso ousar perguntar: quem vê tantos extras?
Talvez alguém um dia alguém os veja. É essa possibilidade que move projetos como o lançamento em DVD de “O cinema falado”, desejoso de permanência, de eternizar aquilo que pode desaparecer ou ser esquecido. Outras de nossas travessuras comuns tiveram destinos contrários: já desapareceram. Uma vez nos reunimos com Sérgio Mekler (nós apenas ajudamos Caetano a colocar suas ideias no papel) para escrever o roteiro da adaptação cinematográfica de “Ó paí ó”, a peça do Bando de Teatro do Olodum, que Caetano gostaria de dirigir em sua sempre adiada volta ao cinema como realizador (e que depois, com outro roteiro, acabou virando filme e série de TV dirigidos por Monique Gardenberg). Na nossa versão, havia até uma conversa entre Tom Zé e Jorge Amado sobre a nova política racial brasileira.
Não é só a impossibilidade, depois da morte de Jorge Amado, de filmar esta cena que me deixa nostálgico (mesmo eu sendo um defensor perpétuo da impermanência). Havia outro momento incrível no roteiro com o por do sol atravessando as janelas do Elevador Lacerda. Ali ouviríamos na trilha sonora uma canção que Caetano compôs especialmente para esse momento. Era como que uma oração para o dia que chegava ao fim, representante de todos nossos dias com sua mistura trágica de dor e alegria, monotonia e excitação. Quando, tempos depois, arquivamos o projeto do filme, pensei aliviado que pelo menos essa música seria lançada. Perguntei por ela: Caetano tinha perdido a fita cassete com a gravação e se esquecido completamente da letra e da melodia. Lembro-me apenas que o refrão terminava ou repetia a frase “que dia”. É o que resta de uma de suas mais belas canções, que ninguém jamais vai ouvir.
Mais uma de nossas aventuras sólidas que se desmancharam no ar foi o blog “Obra em progresso”, que acompanhou a criação do disco “Zii e zie”, e formou uma comunidade (ainda recebo email de Labi Barrô) com conversa de consistência poucas vezes ouvida na internet (talvez por causa de minha moderação antipática, que nem pestanejava ao apagar qualquer trollagem). Procurei mas não encontrei nem vestígio online do que produzimos por ali. Talvez esteja armazenado em algum hard drive desligado da nuvem. Mas decidi cessar as buscas. Foi bom enquanto durou. Estou mais interessado nas próximas desculpas que vou inventar para ficar ainda mais bem perto da continuação dos 15-talvez-14 anos sempre renovados de Caetano.