texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/12/2013
A leitura de dois textos diferentes, numa mesma quinzena de novembro, marcou meu final de ano. Ainda vivo sob o impacto de suas assustadoras, mas previsíveis, revelações. Um é brasileiro: “Setor privado, vítima ou algoz”, assinado por Mário Vinícius Spinelli, controlador-geral do município de São Paulo, e publicado na Folha de S. Paulo (26/11/2013). O segundo tem origem britânica, mas foi capa da New York Review of Books (21/11/2013): “The Snowden Leaks and the Public”, escrito por Alan Rusbridger, editor do jornal The Guardian. Penso que apontam para os principais desafios que vamos enfrentar em 2014.
Começo pelo Brasil, para depois cair no mundo. Spinelli aborda o “recente caso envolvendo desvios no ISS-Habite-se da Prefeitura de São Paulo, fraude que pode chegar a R$ 500 milhões”. Não tenho espaço aqui para entrar nos seus detalhes, e sua investigação ainda está longe de ser concluída. Quero citar apenas a desconfortável opção que Spinelli sugere para explicar a “estranha relação” entre construtoras/incorporadoras com “esquemas especializados em desviar recursos públicos”: ou são corruptoras, beneficiando-se com menor recolhimento de impostos; ou são “omissas e coniventes com o ato ilícito”, por “não denunciarem a prática às autoridades competentes”. Notícias posteriores sobre listas – ainda não plenamente divulgadas – de empresas que teriam pago propina a fiscais mostraram a abrangência dos esquemas: mais de 400 empreendimentos, que incluíam também hospitais e pelo menos uma igreja.
Em matéria de capa da revista Época, intitulada “O país dos alvarás e da propina” (16/12/2013), aprendemos que até a Câmara dos Deputados funciona sem o “habite-se”. O pesadelo burocrático ineficiente e lerdo cria ambiente ideal para achaques. Um “empresário de porte médio do Rio de Janeiro” revelou: “um fiscal do município fechou meu estabelecimento porque eu não tinha um documento devido pela própria prefeitura.” A autorização só saiu depois da assinatura de uma carta de apoio a candidato a prefeito. Claro: o empresário pediu para a revista “que seu nome fosse trocado por temer represálias”.
Como cantaram Fausto Fawcett e Fernanda Abreu em “Rio 40 graus”, canção que cada vez mais serve para descrever a totalidade da realidade brasileira: cidade de comandos de comandos. Somos todos meio favelados, vivendo em construções ilegais/informais. Quantos shoppings têm alvarás? As pessoas não fazem denúncias por temer represálias de antigos comandos, sejam facções criminosas ou “máfias” legais, que podem voltar a qualquer momento, retomando o poder em nossos vários morros/asfaltos. A conivência “com o ato ilícito” vira estratégia de sobrevivência.
Causa alívio colocar a culpa em “poderosos” que generalizaram a corrupção, transformando a sociedade civil em vítima. Na prática cotidiana, esse caminho – entre sociedade e governo – tem mão dupla. Lembro da humilhação depois de consultas médicas, quando na hora do pagamento era preciso responder àquela pergunta cínica: “com ou sem nota?” Isso melhorou, talvez por controle mais rigoroso de movimentações bancárias de cada CPF. Mas continuo estranhando a naturalidade com que os restaurantes quase nunca entregam recibos depois que pagamos as contas. Somos sócios na caixinha para fiscalização dos vários alvarás impossíveis que os órgãos competentes se recusam a emitir? E assim a situação se perpetua, com a colaboração geral?
Dúvida cruel: a cultura brasileira é ou está corrupta? Imagino que os “mensaleiros” tinham um diagnóstico pessimista sobre o caráter nacional. Deviam pensar: “não tem jeito, o país é corrupto mesmo, as coisas só andam assim, vamos organizar um metaesquema de propinas.” O fato de estarem hoje na prisão indica erro de interpretação antropológica? O Brasil quer mesmo passar a viver sob o império da lei, que há de chegar até no coração do Pará, como canta Caetano? Só o tempo e a Papuda dirão.
Claro: há muito de simbólico nessa condenação. Pelo visto, como indicam as notícias sobre a “máfia do ISS” ou sobre o “propinoduto tucano”, nada seria construído no Brasil se todos os envolvidos/coniventes com megaesquemas de corrupção fossem presos. Nenhum habite-se, ruas vazias, xilindrós em todas as esquinas? Outro pensamento sinistro: por vias muito tortas, o PT acabou prestando mais um serviço para a República: forneceu os bodes expiatórios para rito de passagem de purgação nacional. Isso se acreditamos, com otimismo, que a partir do julgamento dos “mensaleiros” entramos no caminho sem volta para ficarmos livres de uma corrupção sistêmica e generalizada. Assim seja.
Os comentários sobre o segundo artigo, o internacional, ficam para 2014.