Alberto Mussa

Escrevi este texto no início de 2016. Era para a revista Boca Coletiva, que parece que encerrou suas atividades. Então publico aqui atrasado. Com atualização no final, pois saiu este ano um novo volume do “compêndio mítico sobre o Rio de Janeiro”, assinado por Alberto Mussa. Talvez o correto fosse reescrever tudo. Mas não tenho tempo agora. Vai assim, com remendo:

Alguns livros de ficção provocaram efeitos concretos, talvez até biologicamente transformadores, na minha maneira de estar no mundo ou processar informações do mundo, incluindo upgrade na interface corpo/mundo. Não foi sempre assim. É fenômeno recente na minha relação com a literatura, percebido depois de cinco décadas de vida. Lembro ter ficado transtornado com a leitura de “Os três estigmas de Palmer Eldrich” (aqui a edição brasileira mais recente), de Philip K. Dick, no início dos meus vinte anos, ao absorver cada uma de suas palavras geralmente no ônibus no Aterro ou na barca atravessando a Baía de Guanabara (eu estudava na UFF e morava em Copacabana). Parecia que vivia overdose da droga intergaláctica traficada na ficção. Pensei que nunca mais voltaria ao “normal”. Mas voltei, com poucas sequelas, algum tempo depois de atingir a última página.

Coisa diferente, e surpreendente, aconteceu quando descobri Kim Stanley Robinson, lendo “2312” três anos atrás. Tenho certeza: não piso mais na Terra da mesma forma. Agora, a não ser quando estou muito distraído, tenho plena consciência de estar a bordo de um planeta totalmente especial, neste sistema solar. Aprendi a concordar, de maneira visceral, com a reflexão da personagem central de “Aurora“, seu lançamento de 2015: “Talvez a resposta adequada para ficar de pé na superfície de um planeta, ao ar livre na sua atmosfera, bem próximo de sua estrela local, é sempre terror. Talvez tudo o que os humanos fizeram ou planejaram fazer foi projetado para se esquivar desse terror.” Mesmo agora, em fevereiro de 2016, quando vejo Júpiter pairar bem brilhante sobre as águas de Copacabana, eu permaneço, por longos instantes, aterrorizado (e também de certa forma maravilhado) com a sensação física opressiva (e também de certa forma leve) de estar preso/viajando aqui neste canto do universo. Ando com o Google Sky Map ligado. Nem saberia que aquele brilho ali vem de Júpiter se meus neurônios e o resto das células do meu corpo não tivessem passado pelo tratamento radioativo da ficção de Kim Stanley Robinson.

Neste canto do universo: Rio de Janeiro, sensação térmica beirando os 50 graus. (Escrevo em pleno carnaval.) Minha maneira de pisar nos asfaltos, morros, areias e pós-manguezais da cidade se transformou radicalmente e visceralmente depois que li Alberto Mussa. Não consigo mais atravessar o Aterro sem pontadas constantes de terror/maravilhamento lembrando o delta formado pela foz do rio Carioca, terreno quase impossível de ser cruzado por terra para chegar ao Castelo há 400 anos. Em cada caminho passei a carregar todas as épocas superpostas, sem ordem cronológica, tudo junto e misturado, ficção e realidade, seguindo as lições trans-históricas do projeto de cinco romances policiais que Mussa está publicando, um para cada século do Rio, mas não lançados na ordem “certa” (o primeiro foi “O trono da rainha Jinga“, ambientado no século XVII, o segundo foi “O senhor do lado esquerdo“, século XX, o terceiro “A primeira história do mundo“, século XVI – o próximo está prometido para o século XIX).

Terror sim, basicamente, isto é, na base de tudo, todo o resto. O narrador de “O senhor do lado esquerdo”, cujo subtítulo é “O romance da Casa de Trocas”, deve anunciar o projeto de Mussa para o “compêndio mítico”, “projeto absurdo”, formado por cinco volumes cariocas: “o que define uma cidade é a história dos seus crimes”, e não arquitetura, geografia, heróis, costumes, poesia. E faz questão de explicar melhor: “Falo dos crimes fundadores, dos crimes necessários; e que seriam inconcebíveis, que nunca poderiam ter existido a não ser na cidade a que pertencem.” Não é exatamente uma teoria ufanista, mas ao mesmo tempo não é inventada ou investigada por alguém que despreza a cidade. Há certamente um amor febril, trágico, na descrição desse fundamento cruel, assustador, aterrorizante.

Cada um dos povos que passaram por aqui, sobretudo os que mais ajudaram a formar a cara da cidade, deixou sua receita para tornar a crueldade mais requintada, mais específica, sem paralelo em outras cidades. Há algo da pá virada no feng shui de seus bairros. Tudo sangue quente. Muito quente. Em “A primeira história do mundo” encontramos a descrição da mais dura lição/contribuição tupi: “essa categoria metafísica fundamental, causa última de todos os fenômenos da natureza e da cultura: a vingança.” Consequência prática: a vida é uma guerra de tudo contra tudo. Mesmo na relação entre vivos e mortos: “Porque os mortos, na verdade, cantam. Descrevem como, quando e por quem morreram. Não dizem a causa, apenas, porque esta é única, é universal: a vingança. É o canto dos mortos que os sacis aprendem e reproduzem para os pajés, durante o sono, para exigir que sejam vingados – e não termine nunca o pêndulo que move o mundo.” Dá para imaginar o terror dos portugueses, holandeses, franceses, piratas ou não, que aqui também guerrearam, diante de práticas/teorias da crueldade tão diferentes das suas. Era preciso rachar a cabeça dos inimigos mortos, para ganhar um nome e poder ter filhos. Portanto, sem inimigos não havia reprodução da vida, biológica e social: “quando os parentes eram muitos, e havia poucos inimigos, se dividiam em metades que passavam a se matar.” Quem era comido por inimigos ia direto para a “terra sem mal”. A crueldade era também piedade, uma forma alienígena de bondade, incompreensível para europeus cristãos e também cruéis.

Em “O trono da rainha Jinga” somos apresentados a uma seita de africanos com sua peculiar maneira de lidar com e explicar a existência do mal no mundo. Haveria desde sempre e para toda a eternidade, uma quantidade finita de maldade para ser cometida. Por isso, nos crimes que praticavam nas ruas do Rio de Janeiro do início do século XVII, com a cidade fundada há pouco mais de cinquenta anos, não bastava matar inimigos. Era necessária uma morte com crueldade horripilante. Na verdade, quem morria, ou era torturado em meio aos mais violentos rituais e piores venenos, nem precisava ser inimigo. Aquela irmandade comandada por gente de Angola praticava atos de maldade aleatória. Cada ato mais cruel que o anterior, para dar baixa na cota de mal, e o resto do mundo – principalmente os membros da irmandade – poder ficar em paz: “quer o máximo de mal sobre os outros, para que nada lhes reste.” (Estranha semelhança com a tese central de um dos sete romances que compõem “7”, de Tristan Garcia: para cada rosto belo que existe, há um rosto horrível – a cota de beleza no mundo também é finita.)

Então, no compêndio mítico de Mussa, a cidade se converte em campo de batalha para todas essas metafísicas conflitantes sobre a origem e o destino do mal no mundo. Ou laboratório onde novas possibilidades de crimes fundadores são testados, atraindo gente de todos os cantos do planeta, como o polonês de “O senhor do lado esquerdo”, que chega no Rio para realizar experiências pré-Wilhelm-Reich ou pós-Marquês-de-Sade da sexualidade humana, logo na casa que foi da Marquesa de Santos. Gente que acredita que a vida tem que ter necessariamente dois lados, não exatamente espelhados no par yin-yang chinês, mas em “velhas tradições africanas que associam o homem à luz, aos números ímpares, às florestas e ao lado direito. Femininos são, portanto, a noite, os números pares, as profundezas aquáticas e o lado esquerdo. Trata-se, como se vê, de mundos incomunicáveis.” Assim como não havia possibilidade de comunicação entre um pajé tupinambá e um jesuíta catequizador. A cidade é resultado dessa falta de comunicação em série. Ainda que tenha produzido alianças inesperadas, ou possivelmente esperadas demais. Um exemplo: “Herdeiros imediatos da filosofia tupi – já incorporada à cidade -, segundo a qual o indivíduo só se torna pleno se tiver um inimigo, os capoeiras passaram a se dividir em maltas, com territórios definidos e emblemas específicos (como fitas de cor, assobios e espíritos tutelares).” Origem bem diferente das congêneres da Bahia, de Cuba, da Venezuela, onde tudo começou como “brincadeira e jogo de piruetagens”. No Rio, explica o narrador de “O senhor do lado esquerdo” o fundamento é “tática de guerra”.

Nesse sentido é possível entender o elogio que esse mesmo narrador faz para o prefeito que resolveu derrubar o morro do Castelo, algo impensável (e quando vi pela primeira vez as tais fotografias da derrubada achei que contemplava Serra Pelada) em qualquer cidade que cultiva sua memória em modo linear: “Para mim, todavia, Carlos Sampaio foi um místico: primeiro, porque – ao destruir os sítios de fundação – ratificou a condição atemporal do Rio de Janeiro, cidade que existe desde sempre, não apenas a partir de 1565.” Por isso sua opção de estabelecer mito de fundação “fora da cronologia” (opção também de Mussa), pois “o conceito de cidade independe da noção de tempo”.

Herdamos assim uma eternidade urbana cruel. Mussa, com seus novos mitos cariocas, escreve a biografia (as biografias) desse nosso coração das trevas particular, e – nas entrelinhas – aponta as linhas de fuga e túneis secretos (inclusive ligando os cinco romances), para quem quiser enxergar, virar onça, e fugir para frente.

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REMENDO 2017: apenas alguns trechos de “A hipótese humana“, que reforçam/expandem os diagnósticos – transétnicos, transclasses, transtudo… – do Rio de Janeiro (em qualquer século de sua história) e os objetivos ontológicos/metafísicos da literatura de Alberto Mussa descritos acima:

  • “era uma criminalidade essencialmente endógena: capoeiras vitimavam capoeiras, membros de grupos rivais” (p. 24)
  • “homens de verdade não se importam com justiça; apenas com vingança” (p. 40)
  • “a morte natural é logicamente impossível.” (p. 135)
  • “O transe não constitui uma perda dos sentidos: é precisamente o fenômeno inverso; a conquista de uma plenitude cognitiva, perceptiva e perspectiva, relativamente às várias configurações do mundo.” (pp. 136-137)
  • “Um homem triste não pode ser inteligente” (p. 142)
  • “não pode haver literatura , no sentido mais essencial do termo, se se prescindir do Mal. Porque 0 Mal é a exceção; o Mal é o Outro – elemento contrastivo necessário que cria em nós a noção de humanidade.” (p. 70)
  • “Embora eu mesmo tenha escrito o livro, não sei tudo. Presumo apenas.” (p. 89)
  • “E todas as versões, mesmo as mentirosas, contribuem para a composição da verdade.” (p. 130)
  • “o que não é segredo, não se pode descobrir.” (p. 137)
  • “nem todas as verdades podem ser provadas.” (p. 151)

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