Roberto Schwarz e Caetano Veloso

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/05/2012

Vários de meus colegas de coluna já comentaram o artigo de Roberto Schwarz sobre “Verdade tropical“. Eu estava me sentindo mais por fora do que piercing em umbigo de piriguete. Abri espaço enorme na minha agenda para ler com atenção as já clássicas 59 páginas. Queria entrar na onda (e ajudar a vender o livro de Schwarz – afinal vivemos ainda o tempo do mercado, mesmo occupied, vitorioso). Porém, a leitura me deixou perplexo. Precisaria reler muitas vezes o artigo, assim como “Verdade tropical”. Schwarz levou 15 anos para tornar pública sua reflexão sobre o livro de Caetano. Gostaria de ter o mesmo tempo para digerir bem seu excelente artigo. Publicaria minha humilde opinião em 2027. Impossível: só a academia nos proporciona essa possibilidade de planejamento a tão longo prazo. Estou noutra, descontrolado. Meu tempo é agora ou nunca.

Por isso assumo o risco de escrever besteira. Minha primeira vontade, abusada, foi declarar que Schwarz apenas repete, muitos anos depois, em muito mais parágrafos, as perguntas que Fausto Wolff tinha feito na Tribuna da Imprensa em 1968: “Mas, dialeticamente, a que conduz a Tropicália? Constatado o caos, habituada a plateia ao caos, o que fazer depois? Qual a síntese para a antítese?” Ou ainda: “o que me parece positivo é a constatação do caos, da anarquia ignorante em que estamos envolvidos. Muito bem: o caos foi capturado e apresentado aos olhos perplexos da burguesia. Mas o caos funciona como a penicilina. No princípio tonteia os germes, mas em seguida os fortifica.” Imaginei irresponsavelmente que seria mais ou menos isso o que Schwarz quer dizer com “[o] contraste evidente entre as partes descombinadas agride o bom gosto, mas ainda assim ou por isso mesmo, o seu absurdo se mostra funcional como representação da atualidade do Brasil, de cujo desconjuntamento interno, ou modernização precária, passa a ser uma alegoria das mais eficazes.”

Eu estaria sendo injusto se insistisse nessa acusação. O artigo de Schwarz é brilhante, diria até tropicaliamente brilhante. Não dá um único ponto sem nó, sem embrulhá-lo em camadas de uma ambiguidade tão ousada quanto a do estranho Caetano (estranho Schwarz chamar Caetano de herói estranho, ou afirmar que as primeiras páginas do livro são “muito estranhas”), que por vezes também soa como confusionismo “calculado”, ou encantado com seu virtuosismo retórico. O início do artigo (entre o “não tenho conhecimento de música nem das composições do autor” e o “gosto muito do livro como literatura”) anuncia a bela e elegante luta (mais kung fu, menos MMA) que vem a seguir, o mais recente round entre dois dos brasileiros que mais admiro (tomei todo cuidado para minha amizade com Caetano não influenciar a análise que faço do combate).

Schwarz se apresenta como autoridade do campo acadêmico, que tem legitimidade inquestionável (ele fala do lugar de poder, com a pompa e circunstância dos poderosos) para identificar a “grande qualidade literária”. Há ainda um tom maravilhado com a “novidade” de um músico popular revelado como “intelectual de envergadura”. Não há condescendência na estratégia: Schwarz aceita Caetano como um de seus pares – o artigo parece um ritual de concessão de título de doutor honoris causa (mas Schwarz nem fala que Caetano escreveu seu livro recorrendo apenas a sua memória, sem consultar documentos, ou mesmo sem voltar a ouvir seus próprios discos – o que poderia ser visto, numa banca careta, como afronta diante de regras básicas da academia).

Seria divertido passar todo esse texto citando trechos que revelam momentos pitorescos dessa luta, oscilante entre a análise do estilo literário do texto de Caetano e a verdade (também cheia de estilo) de seu testemunho histórico – oscilação que por vezes causa até vertigem no leitor menos superficial. Sem tempo para essas sérias brincadeiras, vou logo enfrentar o momento central do artigo, o muito citado comentário de Schwarz sobre o comentário de Caetano sobre cena de “Terra em transe”. Por sua vez, para seu golpe mais duro ter eficiência brutal, Schwarz não segue religiosamente as regras acadêmicas, mesmo tendo o texto analisado diante de seus olhos. Na página 78, são citadas as palavras exatas de Caetano: “quando o poeta de “Terra em transe” decretou a falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na plateia, vi, não o fim das possibilidades mas o anúncio de novas tarefas para mim.” Na página seguinte, Schwarz usa aspas novamente para escrever “energia libertadora do povo”. Repare bem: “energia” e “libertadora” passaram para o singular; o povo perdeu as aspas dentro das aspas que tinha na página anterior e em “Verdade tropical”.

Parecem detalhes tolos. Não são. As palavras de Caetano mudam de sentido. Não estou insinuando que Schwarz foi desonesto. Ele realmente parece acreditar que Caetano pensava no singular e sem aspas. Tanto que aplica redução semelhante ao afirmar categoricamente que, segundo Caetano, populismo, cuja morte o poeta de “Terra em transe” decretaria, é o “papel especial reservado ao povo trabalhador nas concepções e esperanças da esquerda”. As consequências dessa interpretação literária são enormes, e nos conduzem para aquilo que mais gosto de pensar sobre o Brasil. Bem que o próprio Caetano avisou que nossas colunas são pequenas para tratar desses assuntos cabeludos. Vou precisar concluir (talvez…) só na semana que vem. Já precisei de duas colunas até para falar de show do Kraftwerk que não vi. Por que o gentil duelo Schwarz/Caetano, avesso a desfechos e interpretações fáceis, caberia numa coluna só?

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