beleléu

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/10/2012

Fausto Fawcett deveria ocupar o topo das listas de maiores escritores brasileiros. Se isso não acontece, é sinal que nossos mundos literários não sabem ainda o que fazer com sua obra. Muita gente não consegue nem decidir se aquilo é literatura ou simulação de literatura produzida por um software alienígena e delirante, que quer invadir nossos corpos provocando danos biológicos e culturais irreparáveis. Alien: seu texto não se enquadra em nenhuma escola, turma, tendência. Falo isso desde o prefácio que escrevi para o livro “Santa Clara Poltergeist”, publicado em 1991 (nem citava internet naquela distante época). Mas tudo fica ainda mais claro e brilhante em “Favelost”, artefato recém-lançado em papel (editora Martins Fontes), depois de existência enigmática como performance mutante em palcos da cidade.

Penso em detalhe do futuro de nosso sistema educacional: até quando literatura será matéria obrigatória? (Abro parêntese para digressão irresponsável: sempre julguei curioso o destaque que a literatura ganhou no currículo escolar. Outras artes – pintura, cinema, teatro, dança, música – não têm o mesmo peso. Claro: isso está relacionado com a centralidade da escrita, e do livro, no nosso modo privilegiado de produção e transmissão de conhecimento. E também com a importância da literatura para a formação de consciência nacional, lá nos tempos em que os Estados modernos estavam aparecendo fundamentados na ideia de “povo”, capazes de produzir identidades particulares a partir de língua e imaginário comuns. Será que esse arranjo acadêmico tem futuro longo? Nada contra livros ou escritores. Apenas sinto falta de ênfase na educação de outros sentidos, sobretudo o visual. Além disso, advogo que, há décadas, as escolas já deveriam ter disciplinas para estimular o olhar crítico e a produção dos alunos nas chamadas novas mídias, tarefa urgente. Mas não estou aqui para propor revoluções, mesmo sensatas, em nossas escolas. Fecha parêntese.) Se ainda houver, no Século XXII,  livro didático contando a saga dos movimentos literários brasileiros, tenho certeza (sou otimista) que Fausto Fawcett estará em suas páginas, mas ocupando espaço entre capítulos e escolas, assim como acontece hoje com Gregório de Matos ou Sousândrade, que ninguém com sanidade mental completa pode classificar como apenas barroco ou romântico.

Fausto é barroco demais, romântico demais, moderno demais, pós-moderno demais. Sempre demais, e do seu jeito, seguindo suas obsessões. Só posso encontrar semelhança estética em escritor como William Burroughs, também um óvni em livros didáticos adotados por high schools dos EUA (Será que eles existem? Será que não censuram Burroughs?). Mesmo assim, seria um Burroughs já dissecado pelo cinema de David Cronenberg, ou por jogo eletrônico ainda por existir. Cacá Diegues, em sua apresentação para o livro “Básico instinto” (que também foi show, disco etc.), afirma que Fausto é “um Guimarães Rosa urbano”. Concordo, é um bom ponto de partida. Seu sertão, com Lisos do Sussuarão perigosíssimos, antes era apenas Copacabana. Agora em “Favelost”, o sertão pegou a Avenida Brasil e foi se espalhar pelas margens da Via Dutra, formando uma gigantesca mancha urbana que liga o Rio a São Paulo, território descontrolado que nos anuncia o futuro mais sombrio do capitalismo planetário.

Outro dia, um amigo sábio, em instante de pessimismo radical (mas perfeitamente zen), me disse: o mundo está mesmo indo para o beleléu. Em “Favelost”, Fausto descreve o pós-beleléu, o muito além do beleléu. Cada página contém uma revelação apocalíptica mais assustadora. O livro praticamente começa com patricinhas riquíssimas e perversas, “super gossip girls”, dessas que se divertem dando “pisadas de salto alto no coração da humanidade”, em torno de fogueiras gigantescas onde queimam bolsas e maquiagens de vários milhares de dólares só para inalar a fumaça resultante, seu crack de grife que contém “substâncias alucinógenas e anfetamínicas conhecidas como Hulkvuitton”.

Por aí vai, beleléu abaixo. Em Favelost, por exemplo, hoje não é dia da criança: “Criança acabou. É apenas um estágio muito peculiar até os nove anos. Aceleração do CPF dos fedelhos.” As mentes que antes eram consideradas infantis nos perguntam, na bucha: “e aí, adulto, será que tua experiência vai resolver esse problema mesmo?” O que responder? Hoje é dia de reza: precisamos pedir para Nossa Senhora de Aparecida, que tem seu santuário também ao lado da Via Dutra, que nos proteja, ilumine e guarde, para sermos capazes de enfrentar os perigos de uma Favelost que humanamente não sabemos mais como evitar.

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2 Respostas to “beleléu”

  1. outras identidades | Hermano Vianna Says:

    […] é bom. Faz bem. Ajuda a dissolver nosso ego na matéria em movimento (aqui copio Fausto Fawcett). Tenho também que copiar a Maria da canção da Timbalada: existe letra melhor, mais alegre? E eu […]

  2. Rita Indiana | Hermano Vianna Says:

    […] livro, maravilhoso, é um tsunami de ideias como essas. Tudo passa rápido, como em obra de Fausto Fawcett. Não voltamos mais a ouvir falar nem no vírus, nem na quarentena haitiana, nem nos coletores nas […]

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