Posts Tagged ‘Tomas Tranströmer’

sombra e luz

10/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/05/2014

“Alice nas cidades”, de Wim Wenders, foi lançado há 40 anos – tem portanto a idade de Leonardo DiCaprio e Victoria Beckham. Deve ser o filme que, junto com “Solaris”, vi mais vezes na minha vida. Na década 1970 houve muitos ciclos de Novo Cinema Alemão na Cinemateca do MAM e arredores. Eu não perdia uma única exibição. Depois, estranhamente, desapareceu de várias telas. Acompanhei o lançamento da obra de Wenders em DVD, mas nem sinal de “Alice”. Só agora, como por milagre, consegui comprar minha cópia. Foi reencontro bem especial, logo em data tão redonda, que torna evidente a passagem desorientadora do tempo.

Minha primeira reação, ao rever o filme neste mês, foi achar que era “de época”, que todos os objetos de cena – televisores sem controle remoto, telefones de discar, radinho pré-walkman etc. – tinham sido escolhidos pela direção de arte para sugerir nostalgia, ou culto ao passado, algo assim como exibir disco de vinil em filme ambientado nos dias de hoje. Talvez essa impressão tenha sido reforçada pela fotografia em preto e branco, por músicas “antigas” para 1974 (“Memphis Tennessee” ou “Under the boardwalk”), pela jukebox no café de Wuppertal. Aos poucos fui percebendo que tudo aquilo era quase documental, e retratava tecnologias que, mesmo quando vi o filme anos depois de seu lançamento, devem ter me impressionado – ainda adolescente – como elementos de um primeiro mundo futurista, inacessível aqui num Brasil que ainda atravessaria a reserva de mercado de informática.

O filme apresentava lado a lado a atualidade mais crua (a revista “Der Spiegel”, que o protagonista Philip Winter compra nas ruas de Nova York, deve ter sido publicada durante a filmagem, e traz na capa reportagem sobre a greve real de pilotos da Lufthansa que tem impacto na ficção) e aquilo que ainda era promessa (não falo do trem suspenso de Wuppertal, que reaparece em “Pina”, mas da máquina Polaroid que ainda não estava no mercado). Fui descobrindo, assustado, que aquilo que de início parecia “de época” era na verdade a minha época. Diagnóstico talvez cruel: sou tão antigo quanto aqueles defeitos nas imagens dos aparelhos de TV dos motéis de beira de estrada na Carolina do Sul? Ou quanto um jumbo 747 da Pan Am?

Wenders, em 1987, provavelmente no auge da sua influência, foi redator chefe do número 400 da revista Cahiers du Cinema, onde comenta cada um de seus filmes. São suas palavras: “É com ‘Alice nas cidades’ que encontrei minhas marcas próprias no cinema.” Sabemos como essas marcas se difundiram, virando maneirismos insuportáveis de cinema de arte. Mesmo os temas de “Alice” marcaram épocas vindouras, até a atual. Em 2014, no mundo Instagram, todas as pessoas são um pouco Philip Winter, fotografando tudo para provar sua existência, e a existência das coisas ao seu redor. Vivemos em várias épocas ao mesmo tempo, tantas que é difícil distinguir quais as sombrias e quais as luminosas.

Quando aparece pela primeira vez no filme, Philip Winter está sentado na areia, embaixo de um “bordwalk” (calçadão de madeira suspenso, típico de algumas praias dos EUA), e canta trecho de “Under the boardwalk” (canção que fez sucesso primeiro no repertório do grupo The Drifters, nome que combina perfeitamente com um filme que tem como eixo central a errância). Só agora noto outra estranheza: é uma das músicas mais solares que conheço, mas – descrevendo um daqueles dias em que o chão está tão quente que desejamos ter pés “à prova de fogo” – todo o chamego acontece na sombra, “out of the sun”. Quando para de cantar, Winter recolhe as fotos e sai de cena se distanciando da câmera, cruzando a sombra do “boardwalk”. Porém, durante todo o filme, nunca o vemos plenamente na luz. O preto e branco, escolha para os filmes realistas e mais pessoais de Wenders, é famoso e copiado por ser sempre meio borrado, sem limites precisos entre sombra e luz.

Coincidência (sempre suspeita): revi “Alice” enquanto lia pela primeira vez Tomas Tranströmer, o mais recente Prêmio Nobel para a poesia. Chamou minha atenção a repetição da palavra “sombra”, inúmeras vezes, em sua obra. Vou cometer aqui a maior imprudência desta coluna: traduzir alguns de seus versos (e, pior, do inglês, pois não sei uma palavra do sueco original). “Nós temos muitas sombras.”; “Sou carregado em minha sombra / como um violino / em seu estojo preto.”; “O sol está baixo agora. / Nossas sombras são gigantes. / Em breve tudo será sombra.” Lembro a cena em que Alice vê a foto da asa do avião e reclama de seu vazio. Então encontro o poema “Vermeer” (não por acaso pintor favorito de Wenders), de Tranströmer, que termina assim: “E o que é vazio vira o rosto para nós / e sussurra: / ‘Não sou vazio, sou aberto.'” Troco épocas sombrias e luminosas por épocas abertas. Fico inocente, como Alice, novamente.